Carlos Grassioli / Eu conto um sonho.

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Acordei, ou melhor: sonhei que estava sendo acordado por um som antigo, familiar e nítido de garrafas sendo lavadas com água, sabão e grãos de milho, dentro das quais minha mãe derramaria o leite, depois de ter deixado sobre a mesa da cozinha o nosso desjejum.

A grande e rústica mesa talhada em madeira, sobre a qual fora servido o café da manhã  —alguns pequenos pratos de ágata azul, já descascados, com polenta e leite dentro— o velho fogão a lenha, mais um velho guarda-louças, sem portas, que escancarava condições de quase penúria, formavam um quadro que traduzia de forma inequívoca o cotidiano de uma família que tinha, no muito que lhe faltava, motivos de sobra para almejar vida melhor.

Mas que nem por isso deixava de sonhar e que, por isso, sempre soube, e muito bem, celebrar, vibrar e viver intensamente todo naco de felicidade conquistado, ainda que fugaz.

Sonhei que estava sendo acordado pelo som inconfundível, reconfortante e único, de minha mãe na cozinha, e, como se não bastasse, ao sair da cama vi meu uniforme branco limpinho passado a ferro, e o laço azul, sobre a cadeira. E no chão… meu primeiro tênis branco, novinho, que eu calçaria pela primeira vez.

Era emoção demais para um coração de criança. Por isso eu não cabia em “ si”, nem em fá, muito menos em dó, mas, sim e só, em sol maior, ao acordar, hoje, às 7 horas da manhã de um dia 7 de setembro. E o melhor de tudo: com 7 anos de idade.

Em seguida, e antes de ir para a escola, passar na casa da dona Cledir, mulher do comerciante, onde eu deixava, sagrada e diariamente, duas garrafas de leite, recém tirado da vaca, que junto com o galinheiro, a horta, o pomar, mais uma pequena roça, formava nosso patrimônio familiar mais precioso.

Depois do leite entregue e dever cumprido, então pisar e de novo o mundo, ou melhor, o meu mundo de proezas e de coloridas pobrezas. De infâncias, passaredos e belezas .

E também de tristezas… porque já, ali, embora não visse a menor possibilidade, eu queria, porque minha alma era e sempre foi, ser artista. E a professora do jardim da infância, percebendo isso, aproveitou a semana da pátria e amarrou na minha cintura um pequeno tambor colorido, com duas baquetas, do qual eu tirava o som e o compasso perfeito da marcha, para as demais crianças que me seguiam, nos dias de ensaio.

Era 7 de setembro de 1954, hoje, quando acordei. Talvez o dia mais sério da minha vida.

Eu não podia errar: nem na batida, nem no compasso e me sentia o único responsável por um mundinho que se arrastava atrás de mim, em forma de uma procissãozinha infantil e atrapalhada, mas que causava o maior furor ao público que assistia o desfile.

Lembro-me como se fosse hoje: eu conduzia a pequena trupe com ar solene, grave e com a seriedade de quem equilibrava o mundo na palma da mão.

Ali, já, o traço de quem aprecia a “arte” de comandar, de querer impor o seu ritmo, seu compasso, e que alguns danos me causou pela vida afora.
Mas ali, também, além dos meus “15 minutos de sucesso” (talvez os únicos), a certeza confortante e definitiva de que meu mundo, minha vida, seriam regidos, seriam norteados, de uma forma ou de outra, pela música, pela arte.

Quantas vezes, menino ainda, em momentos ou instantes de puro devaneio experimentei um tipo de felicidade e alegria peculiares sendo o “grande artista” do meu próprio circo. Sendo o meu próprio palhaço!

O mesmo tipo de felicidade e alegria que senti hoje, ao acordar fora do tempo e do espaço, tocando alguma coisa delicada, frágil, preciosa, como um caquinho de azulejo mourisco, legítimo, uma lasca de pérola verdadeira ou um rasgo de arco Iris: esses naquinhos de felicidades ou alegrias, envolvidos em farelos de estrelas, que guardamos, com todo cuidado, dentro de um compartimentos especial, uma espécie de porta-jóias da memória afetiva, e que só conseguimos acessar enquanto a razão descansa, permitindo, assim, que o inconsciente acorde e se liberte —nos liberte— abrindo as portas para o universo mágico e generoso do sonho, um mundo de infinitas possibilidades onde, na eternidade de um instante, podemos tudo: como ignorar, completamente, toda e qualquer espécie de cronômetro ou calendário, permitindo-nos transitar leves, livres e soltos no tempo e no espaço, revivendo momentos preciosos de nossa vida ou tendo tudo aquilo que gostaríamos de ter e que nunca tivemos, nem nunca teremos; melhor ainda: sendo aquele todo que gostaríamos de ser e que nunca fomos nem nuca seremos. Exímios trapezistas, por exemplo. Ou poetas!

Foi só um sonho, nada mais do que um sonho, esse meu: “volver a los siete”.

Mas que me permitiu viver e sentir de novo a mesma sensação de plenitude que vivi e senti naquele dia sete de setembro de 1954, quando num único dia e por alguns instantes… fui feliz para sempre!

* Escritor.
 

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