Iraque e Afeganistão: as guerras terceirizadas dos Estados Unidos

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José Antonio Lima*
Em entrevista a semanario brasileiro Época, Allison Stanger, autora do livro "One Nation Under Contract", explica como um sistema de terceirização pouco transparente ajudou a tornar a política externa dos Estados Unidos mais ambiciosa. E a criar um novo grupo de empresas que lucram com a guerra

Um relatório publicado em julho pela Federação dos Cientistas Americanos (FAS, na sigla em inglês) mostrou que entre 2002 e 2008, o número de militares dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão pulou de 5,2 mil para 187,9 mil. Em 2010, a quantidade será ainda maior, com cerca de 140 mil soldados no Iraque e outros 66 mil no Afeganistão. Tudo isso sem contar a presença marcante em mais de 40 países em todos os continentes. Dados como esses suscitam uma questão: como os Estados Unidos conseguem sustentar essas operações?

Grande parte da resposta está no livro One Nation Under Contract: The Outsourcing of American Power and the Future of Foreign Policy (algo como Uma Nação sob Contrato: A Terceirização do Poder Americano e o Futuro da Política Externa), escrito por Allison Stanger, professora de Relações Internacionais do Middlebury College, nos EUA. No livro, ela detalha o funcionamento de um sistema de terceirização de tarefas que vão desde o fornecimento de alimentação aos soldados até missões de combate, como as realizadas pela Blackwater, uma empresa de segurança privada, atualmente chamada de Xe (pronuncia-se “Zi”), que prestou serviços para a CIA, a agência de inteligência dos EUA.

Segundo os dados apresentados no livro – resultado de um estudo de sete anos – esse sistema consome, em contratos e subvenções, 82% dos orçamentos bilionários dos departamentos de Defesa e Estado dos Estados Unidos, e 96% do orçamento da Usaid, a agência de incentivo ao desenvolvimento do governo americano.

Nesta entrevista a Época, Allison Stanger explica como a terceirização, além de criar um poderoso grupo de empresas que lucram com a guerra, influenciou a política externa americana e permitiu que os Estados Unidos se tornassem “demasiadamente ambiciosos”.

 – Como a senhora decidiu pesquisar esse tema?
Allison Stanger – Eu percebi determinados padrões a respeito dos gastos do governo, achei que eram interessantes e quis entender porque existiam. Comecei pelos contratos de segurança privados, que estavam aparecendo em diversos lugares, como os Bálcãs e a América Latina. Fui procurar saber então os que essas pessoas estavam fazendo nesses locais e para quem trabalhavam, e descobri que isso era apenas um pequeno pedaço de um problema muito maior.

ÉPOCA – Em que tipos de tarefas as empresas terceirizadas com contratos com o governo americano estão envolvidas?
Allison – Eles estão envolvidos em tudo, e se tornaram absolutamente vitais para a política externa americana, não apenas nas guerras, como no Iraque e no Afeganistão, mas também em nossas iniciativas de fomentar o desenvolvimento. Elas dão segurança às embaixadas americanas, provêem alimentação e uniformes para as tropas, treinam exércitos e polícias estrangeiras, cuidam de projetos de reconstrução pelo mundo, e há ONGs que recebem dinheiro do governo para projetos na África.

– E qual foi o dado que mais chamou sua atenção?
– O que mais impressiona as pessoas que converso é o tamanho da fatia do negócio política exterior americana nas mãos da iniciativa privada. Houve uma mudança de paradigma na forma como os Estados Unidos conduzem sua política externa, mas isso ocorreu sem que as pessoas percebessem. O dado mais surpreendente é o que mostra qual porcentagem do orçamento do Departamento de Estado e do Pentágono [o Departamento de Defesa dos EUA] são gastos em contratos [terceirizados] e subvenções. Isso chama a atenção porque mostra que não é um assunto periférico, e sim estratégico. É uma grande parte sobre o que os Estados Unidos fazem no mundo.

A terceirização permite que os Estados Unidos entrem em guerras sem instituir uma convocação obrigatória. Sem os terceirizados, a política da guerra seria em algo totalmente diferente

 – Mas a contratação de empresas terceirizadas não é uma novidade na política exterior americana, não é verdade?
– Sim, eles sempre estiveram presentes, desde a Guerra de Independência [1775 a 1783] e a Guerra de Secessão [1861 a 1865], mas o que mudou foi o escopo de sua ação e a dependência criada no Estado americano. É algo sem precedentes, especialmente se comparado com outros países. Essa prática se tornou bastante importante na Guerra do Vietnã [1959 a 1975], mas mesmo então a dimensão era outra. No auge da guerra, as empresas privadas respondiam por 13% da presença americana no Vietnã. Hoje, no Iraque e no Afeganistão, eles formam uma maioria esmagadora.

 – E como a terceirização está modificando a forma como os Estados Unidos conduzem sua política externa?
– O problema maior, que está claro no Iraque e no Afeganistão, é o seguinte: a terceirização permite que os Estados Unidos entrem em guerras sem instituir uma convocação [o serviço militar obrigatório acabou em 1975 nos EUA]. Podemos ter Forças Armadas apenas com voluntários porque usamos os terceirizados, mas, sem eles, a convocação tornaria a política da guerra em algo totalmente diferente. Hoje, é muito fácil ter uma política externa demasiadamente ambiciosa.

 – A senhora escreveu artigos afirmando que boa parte do que é gasto com contratos e subvenções acaba escoando pelos ralos da corrupção. É possível calcular quanto dinheiro foi desperdiçado desde a invasão do Iraque?
Obama defendeu a lei de Transparência e Responsabilidade no Financiamento Federal, que determinava que o governo publicasse, em janeiro de 2009, todas as informações a respeito de subcontratações. E ele ainda não fez isso. É preciso insistir na busca de transparência. Isso vai resolver muitos problemas.

 – A senhora acha que a terceirização em si é uma coisa ruim ou há um lado positivo?
– O problema é a terceirização estar associada com a guerra. Eu defendo que existe a terceirização boa e a terceirização ruim. A boa é aquela com foco no desenvolvimento. É uma forma de levar a tomada de decisões para o nível local, de saber o que as pessoas e países necessitados precisam, em vez de simplesmente dizer o que eles deveriam querer, uma coisa que os Estados Unidos fizeram muito. Não sou contra a terceirização em geral porque ela é uma forma inovadora de fazer diferença no mundo.

 

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