Reconto: fatiando o tempo

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Carlos Grassioli.*

Uns fazem história. Outros, como eu, contam. E contar histórias talvez seja a forma que encontrei de sinalizar minha passagem pela vida, às vezes tão incompreensível.

Vislumbrar nos meus escritos uma forma de não passar pela existência no mais absoluto anonimato, o que além de pretensão talvez não passe de pura ilusão. Mas eu me dou por satisfeito e gratificado se com o que escrevo, mesmo desprovido da pátina da erudição, eu consigo criar um sopro de vida que seja, proporcionando um pouco de prazer, no mínimo estético, a quem me lê.

Gostaria de ter escrito mais e lido menos no ano que passou, mas não foi o que aconteceu, o que torna difícil, para mim, me reportar a algum livro em especial, sobretudo no gênero ficção. Mas posso indicar, com segurança, O Albatroz Azul, um belo romance de João Ubaldo Ribeiro, que depois de muito tempo nos surpreende, de novo, como um dos destaques do ano na literatura brasileira.

Na literatura estrangeira, um destaque especial para os aforismos de Kafka, que iniciam com a seguinte pérola: “O verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser percorrida”.

No gênero não-ficção, dois destaques merecidos:

A música desperta o tempo, do genial maestro Daniel Barenboim, cuja colaboração foi fundamental para a formação da orquestra West-Eastern Divan, composta por jovens músicos palestinos, árabes e israelenses, apostando, não na tolerância (que segundo Goethe é um limitador insultuoso), mas na verdadeira aceitação que significa reconhecer a diferença e a dignidade de outros indivíduos.

Cartas do poeta sobre a vida, uma preciosa seleção de textos extraídos das quase onze mil cartas escritas por Rainer Maria Rilke. Uma espécie de guia para a vida. Sobre o tema solidão, o poeta discorre com autoridade: “Os mais solitários são, precisamente, os que mais contribuem para a coletividade. Eu já disse em outro momento que um pode ouvir mais, outro menos da vasta melodia da vida; consequentemente, este último tem um dever menor ou menos significativo na grande orquestra.

"Aquele que ouve toda a melodia seria o mais solitário e o mais comum, pois ele ouviria o que ninguém ouve, e isso apenas porque compreende em sua completude o que os outros ouvem obscuramente e com lacunas".

Senti-me tão contemplado como quando li Solidária Solidão, o livro de Poesias (pérolas) da “pintora de palavras”, a poeta e artista plástica brasileira, radicada no Uruguai, Tirzah Ribeiro, a quem tive a honra e o imenso prazer de conhecer no ano que passou. Por que o título do livro? Tirzah também, com a mesma propriedade de Rilke, responde: “Porque entendo que todo o ser solitário é, por princípio, solidário”.

No ano que findou, sofri grande perda afetiva no plano pessoal, ao enterrar minha mãe, logo depois de meu pai. Assustado, triste, delirante, saio “do outro lado” em pé, vivo! E concluindo, se bem não definitivamente, que não existe nem antes nem depois. Existe tão somente o durante, tão somente o presente.

Nem eterno, nem divino; e se existe uma escala evolutiva, ela é única e absolutamente humana e nesse plano minha meta é conseguir chegar o mais próximo possível do nível de humanidade a que chegaram meus pais.

Cheguei ao fim de mais um ano, como quando ele começou: fora alguns momentos de pura ilusão, como um comum mortal. E assim como chegarei ao fim da minha existência, não para entrar na história … porque não a fiz. Contei algumas.

Se poucas e pequenas foram as conquistas, uma agradável sensação de iniciar um novo ano sem maiores dívidas com a vida; e embora cheio de dúvidas, com o consolo de algumas certezas. Por exemplo:

A certeza branca dos lírios de dezembro.
A certeza lilás das quaresmeiras e dos manacás.
A certeza amarela das flores dos ipês e dos garapuvus.
A certeza verde-claro-escuro da mata que me rodeia.
A certeza dourada do por do sol.
A certeza prateada da luz da lua refletida no mar.
A certeza silenciosa e sábia das grandes pedras em frente à minha varanda.

No último dia do ano, acometido de um tipo de tristeza natural e inevitável nos ritos de passagem e que tem a ver com determinadas escolhas que fazemos, depois de um mergulho solitário no mar, ao voltar à tona, uma sensação de plenitude me remeteu à frase de Eurípides, citada por Oscar Wilde no livro De profundis: “O Mar lava as feridas do mundo”.

Ainda sob o efeito dessa sensação, de plenitude, de que o mar realmente lava as feridas do mundo, convido todos a bordo de 2010 a levantar âncoras para que então, ‘La nave vá’, hirta, impávida, desvairada, espantosa, espantada. À deriva; às vezes, por carecer de direção; outras, por carecer de sentido.

Não importa, esta foi e sempre será a aventura maior.

* Escritor.
 

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