Um Ensaio se Orquestra

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Carlos Grassioli.*
 
"mimo", uma única palavra escrita assim e em letras gigantes, nos grandes cartazes espalhados pela bela cidade de Olinda. Senti-me tão bem recebido, como se fossem pra mim, embora anunciassem, tão somente, um grande evento musical: Mostra Internacional de Música de Olinda, que aconteceria ali nos próximos dias.

Músicos, de diversas partes do mundo, alguns carregando seu próprio instrumento iam chegando e aos poucos, sons dos mais variados tipos foram se espalhando, até um determinado momento em que a cidade toda "ensaiava" e se ensaiava para o evento.

Naquele final de tarde, totalmente envolvido pelo clima de expectativa, pela sensação agradável de véspera de grande espetáculo que se espalhava pela cidade, eu  subi " devagar e sempre" uma das íngremes ladeiras que levam à Catedral da Sé.

Lá em cima, uma parada para descanso no jardim lateral da Catedral. Um espaço amplo, com grandes arcadas, uma espécie de terraço de onde se tem a mais bela vista da cidade.

Em primeiro plano, lá embaixo, entremeando antigas casas coloniais e fachadas barrocas das belíssimas igrejas, um exuberante jardim tropical ponteado por altíssimas palmeiras reais que num bailado suave provocado pela brisa, pareciam querer tocar o céu. Em segundo plano, ao fundo, um mar azul turquesa e acima da linha do horizonte, um céu que desmaiava em azul de fim de tarde.

Os poucos turistas iam deixando aquele fantástico espaço até o momento em que anoiteceu por inteiro e uma lua imensa solta no céu, apareceu para me acompanhar e dividir comigo a regência de uma rara e curiosa orquestra de sons, que vinha de diversos pontos da cidade, onde músicos de diversas nacionalidades ensaiavam.

De repente, todos silenciaram, permanecendo os sons ou ruídos normais de uma Olinda que se "enfeitava", tão linda para mim, naquela noite de quase lua cheia.

A prática da estrada, do viajar só, entre outras coisas, fez com que eu desenvolvesse um tipo de faro, eu diria intuitivo e que acaba me proporcionando sempre, em lugares especiais e que normalmente nunca estão vazios, raros momentos de prazer solitário. Como aquele anoitecer no alto da Sé em Olinda. Totalmente arrebatado por aquele cenário fantástico, fiquei ali mais de uma hora, absolutamente sozinho.

Saí dali, em estado de graça, descendo por outra ladeira até a Rua do Amparo, uma das tantas ruazinhas de casas coloniais, grudadas umas nas outras, com cadeiras nas calçadas ocupadas por pessoas que conversavam entre si ou simplesmente usufruíam do frescor da noite.  __ "Mininos, deixem o moço passar" __ disse uma mãe às crianças que brincavam, me fazendo esquecer a idade.

Segui caminhando em direção a um som de percussão e de instrumento de sopro, até chegar diante de uma casa colonial, de pé direito alto, com uma porta e duas grandes janelas de parapeito largo, abertas. Na parede, escrito:  "Grêmio Musical Henrique Dias, fundado em 1954".

Um simpaticíssimo senhor idoso, apareceu na porta me convidou a entrar e me perguntou: "O distinto é de onde?"
Pego de surpresa, respondi, agradecendo pela "distinção".

É uma escola de música, mantida única e exclusivamente pelos moradores, onde qualquer pessoa da comunidade tem acesso gratuito. Ali, dentro de alguns instantes, aconteceria o ensaio de uma das tantas bandinhas de Olinda.

As cadeiras enfileiradas, aos poucos, foram sendo ocupadas por pessoas simples, comuns, em idades que variavam dos 12 aos 80 anos e,  na medida que chegavam, tiravam os instrumento dos respectivos estojos ou maletas e iam afinando com os que já haviam chegado.

Um agradável cheiro de banho recém tomado invadiu todo o espaço, provocando um pequeno alvoroço seguido de boas risadas. Com os cabelos ainda molhados, de uma sensualidade natural e vestindo um tomara-que-caia, que deixava a mostra ombros delicados e femininos, uma bela jovem negra, era o último componente da banda que chegava.

Primeiro sons isolados e em seguida os instrumentos iam se juntando e formando frases musicais interrompidas ou quebradas, até o momento em que, sob a batuta de um maestro jovem e cheio de entusiasmo, o ensaio começava.

A soleira da porta e os parapeitos das grandes janelas, aos poucos foram sendo ocupados por pessoas de todas as idades, inclusive crianças de colo, que assistiam do lado de fora, em silêncio e com expressões de júbilo.

Eram peças musicais antigas e conhecidas, de ritmos variados e de melodia simples e romântica que terminavam, sempre, com aplausos.
O público se revezava, uns saiam outros chegavam e eu percebia que aquele pequeno espetáculo, fazia parte do cotidiano daquelas pessoas, daquela pequena cidade, que, sob vários aspectos, parece ter parado no tempo.

Em Olinda, o visitante volta no tempo, não só por se sentir envolvido pelo cenário colonial barroco, mas e principalmente, pelo jeito de ser e de estar do povo que ali vive. Que diz boa noite, boa tarde ou bom dia, não importa a quem. Que ao anoitecer, depois de mais um dia de trabalho, coloca cadeiras nas calçadas das ruelas estreitas, formando assim um pequeno cenário de um antigo espetáculo diário, onde atores de todas as idades, ao som de bandinhas que ensaiam, não fazem mais do que jogar conversa fora, aproveitando a agradável brisa que sopra do mar.

Naquela noite, uma espécie de magia simples, de tempos idos me remeteu , por alguns instantes à infância.  

Como se o grande cenário de um nordeste alegre e triste, cujos bastidores ainda revelam um nível de pobreza e miséria aviltante (O que não tem governo nem nunca terá…), de repente e por obra de algum mestre da ilusão, tivesse ficado às escuras, para que um único holofote iluminasse aquele pequeno cenário, me privilegiando com um raro momento da mais pura e genuína poesia.

Só um desenho de xilogravura como os que capeiam e ilustram os livrinhos de cordel, poderia e de forma perfeita, traduzir o verdadeiro significado daquele singelo quadro.
Foi assim que registrei e guardei na memória, como uma xilogravura em branco e preto da capa de um desses tantos livrinhos vendidos em qualquer esquina e que representam a antiga arte dos menestréis, dos repentistas, dos cantadores e contadores de história. Alguns, ainda hoje podem ser encontrados nas praças e feiras livres desse surpreendente nordeste brasileiro.

De volta ao sul, termino o "dever de casa" e já com saudades.
Saudades de um Brasil tão musical, tão distante e tão diverso do meu.

* Escritor, viajero impenitente.

 

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