A imprensa, os alimentos e o cassino do capitalismo

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Paulo Machado*

Em 1946 o médico Josué de Castro publicava a primeira edição “Geografia da Fome”. Para ele, a fome que assola o planeta não é resultado de fatores naturais nem de causas raciais ou biológicas. É, na verdade, decorrência de ações do próprio homem, que governa o mundo de forma a provocar concentração de riqueza e miséria. Para ele a fome “é a manifestação biológica de um problema social”.

“A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de subdesenvolvimento.A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome. A fome não é um produto da superpopulação: a fome já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do após-guerra. Apenas esta fome que dizimava as populações do Terceiro Mundo era escamoteada, era abafada era escondida. Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu.”

Passados mais de sessenta anos o assunto vergonhoso insiste em voltar à tona. Para a ONU, neste momento mais de cem milhões de pessoas, que dependem diretamente de seus programas de assistência humanitária, estão sofrendo o impacto do aumento do preço dos alimentos. Segundo o professor Miguel A. Altieri [1] “Há 33 países hoje à beira da instabilidade social devido à falta e ao preço dos alimentos.” Segundo a FAO há no mundo mais de 800 milhões de pessoas passando fome, dentre elas, 350 milhões são crianças com menos de cinco anos.

Na América Latina, que produz 30% a mais de comida do que sua população consome, 52,4 milhões de pessoas são subnutridos, das quais, nove milhões são crianças menores de cinco anos, segundo Juan Garcia Cebolla, Coordenador do Programa América Latina e Caribe Sem Fome[2]. Os números não são de hoje, nem de ontem, nem são reflexo das recentes altas nos preços mundiais dos alimentos. São praticamente números eternos, que perduram há séculos e que só fazem aumentar, praticamente na mesma proporção que aumenta o numero de gentes ao redor do globo terrestre.

De novo nesses números só há a constatação, por autoridades da ONU, de que mais gente está entrando para as estatísticas mundiais dos “subnutridos”, ou seja, aqueles que não comem sequer o mínimo necessário para sobreviver, devido às recentes altas dos preços dos alimentos no mercado internacional.

Esse debate veio a público trazido pelos meios de comunicação de maneira, no mínimo, atrapalhada. Em um primeiro momento, os principais jornais do mundo, incluindo os jornalões brasileiros, estamparam em suas primeiras páginas as declarações de autoridades de organismos internacionais da própria ONU culpando os biocombustíveis como os vilões da história. Seriam eles os principais responsáveis pelos aumentos de preços dos alimentos pois estariam ocupando as terras agricultáveis que antes eram destinadas a produção de cereais vitais para a alimentação humana como: o milho, a soja e o arroz. Isso pode até se confirmar como uma tendência[3], mas no momento há outros vilões que passam praticamente desapercebidos pelas páginas da imprensa.

Quem chamou a atenção para o problema atual da fome foi a diretora do Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (WFP), Josette Sheeran. Ela afirmou em uma sessão do Parlamento Europeu, realizada em Bruxelas, no dia 6 de março, que a inflação no preço dos alimentos está gerando mais fome no mundo e que causou um rombo de US$ 500 milhões (R$ 835 milhões) no orçamento do Programa de Assistência Humanitária em 2008.

A diretora do WFP atribuiu às mudanças climáticas, à crescente demanda por alimentos na Índia e na China e ao aumento da produção de biocombustíveis como os principais fatores que contribuem para o aumento do preço dos alimentos. Em seu pronunciamento Josette Sheeran disse que os governos precisam "olhar de maneira mais cuidadosa para a ligação entre a aceleração na produção de biocombustíveis e o suprimento de alimentos". Porém ela não especificou a que tipo de biocombustível se referia e a imprensa não se preocupou em esclarecer.

Quatro dias depois, no dia 10 de março, foi a vez do diretor-gerente do Banco Mundial, Graeme Wheeler, se manifestar sobre o assunto. Segundo ele “conseqüências devastadoras” poderiam advir da alta simultânea do petróleo e dos preços dos alimentos no mundo em desenvolvimento.

Wheeler explicou que os aumentos no preço do petróleo encareceram as despesas com fertilizantes e transporte de alimentos, encorajando assim a produção de biocombustíveis. Mas o diretor-gerente foi mais específico ao citar que um quarto das colheitas de milho, que representam 10% da produção global, foi destinada à produção de biocombustíveis em 2007. Faltou apenas ele dizer que isso ocorreu nos Estados Unidos onde o etanol é produzido a partir do milho e não da cana de açúcar como no Brasil. "Os maiores preços da energia, a seca e o aumento da demanda provocaram um aumento de 75% nos preços dos alimentos básicos desde 2005", afirmou Wheeler, que mencionou que o preço do arroz alcançou o nível mais alto em 20 anos na semana passada. A imprensa porém não explicou a relação entre o preço dos alimentos e o preço do barril de petróleo, que também atingiu o recorde na mesma semana, e entre ambos e os ganhos auferidos pelos investidores nas bolsas de mercadorias.

Na quinta-feira, 27 de março, a revista Time embarcou na pauta e estampou em sua capa uma espiga de milho despindo-se das folhas transformadas em notas de dólar. A manchete de capa era: “The Clean Energy Myth“ (o embuste da energia limpa).

Na matéria, assinada por Michel Grunwald, o cenário descrito por uma das fontes é a Amazônia brasileira. O vaqueiro texano John Carter, casado com uma brasileira, herdeira de fazenda na Amazônia , sobrevoa a floresta em seu avião Cessna e fala do desmatamento provocado pelas pastagens e pela cultura da soja comparando a sensação que sente à de “testemunhar um estupro”.

Matias, Eduardo Felipe Pérez. 1972 – A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 182.

*Jornalista, vencedor do Premio Caixa/Revista Imprensa 2006 de Jornalismo Social, foi Assessor do Comitê de Qualidade Editorial e Ouvidor da Radiobrás. Fonte: Observatório do Direito à Comunicação

 

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