Carlos Grassioli / Quebrando vidraças

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A respeito de um dos meus últimos escritos, uma sobrinha me surpreendeu com uma expressão que me fez refletir sobre o que eu havia escrito. Mais especificamente, sobre um tipo de silêncio que eu abordo nesse texto. O "Silêncio das palavras não ditas e que causa desconforto”. A expressão que ela usou foi: "De forma até suave, mas você acaba quebrando vidraças".

Reli aquele parágrafo e imediatamente decidi tentar encontrar “o fio da meada”, onde aquele tipo de reflexão havia começado, porque eu tinha certeza de que estava ligado a alguma vivência de viagem e que havia mexido muito comigo. Não precisei pensar muito: bastou ler a manchete de hoje “Mais um trabalhador rural é assassinado no Pará, o quinto, já, em menos de um mês”. Quando dei por conta, estava na Bélgica de novo.

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

 (Martin Luther King)

Foi no ano passado, quando eu andava pelas ruas de Bruxelas e avistei um grande largo ocupado unicamente por várias e imensas esculturas, de torsos humanos de aproximadamente 2ms de altura, todas iguais, expostas como que em fila indiana. Curioso, fui me aproximando e na medida em que chegava mais perto fui sendo invadido por uma forte e estranha sensação. Quando finalmente atingi o largo, percebi que os rostos, alem da expressão neutra, todos ostentavam mordaças sobre as bocas.

Nunca tinha visto uma exposição daquela dimensão num espaço público e de tamanho impacto! Jamais vou esquecer, antes mesmo de saber o tema da exposição, a sensação que eu já sentia. Remetia ao título: "OS SILÊNCIOS DE TODOS NÓS". As únicas palavras escritas, em todo o espaço, absolutamente suficientes e até dispensáveis.

Embora sugerisse meditação, mas muito mais reflexão, não era nada zen, esotérico ou místico.

As pessoas circulavam entre as esculturas no mais absoluto silêncio e com expressão grave, séria; nem mesmo uma insinuação de riso, como se estivessem caminhando dentro de um templo… ou num cemitério. Até as crianças correspondiam à seriedade dos adultos.

Em meio àquela grande metrópole, um silêncio tão ruidoso que se sobrepunha aos ruídos normais da cidade.

Tão forte foi o impacto pra mim que num determinado momento era como se aquelas imensas esculturas, numa estranha cena de cinema mudo, começassem a se movimentar, em procissão absolutamente silenciosa.

Lembrei-me, de imediato — e não saberia explicar como e por quê —, da música e de toda a letra de “Rosa de Hiroshima”, gravada por Ney Matogrosso.

Aquelas bocas amordaçadas, sim, quebravam vidraças. As vidraças do mundo.

E me remeteram aos mais diversos tipos de silêncios nefastos, como o das palavras não ditas, que todos conhecemos, porque o vivenciamos não só no âmbito privado, como no social, mas, e sobretudo, aos piores silêncios: ao silencio criminoso da indiferença, do “quem cala consente”; e ao silêncio imposto pelo medo, pela opressão.

Era de manhã e eu tinha ainda um bom tempo para curtir a cidade, mas decidi ir direto à estação, onde fiquei horas, sentado num banco esperando o trem e refletindo sobre a exposição e sobre o forte impacto que ela causou sobre mim.

Fiquei pensando na importância da arte, da universalidade da arte, sobretudo quando ela dispensa absolutamente a palavra. Não precisa de legenda.

Aquela fantástica obra, na sua unidade, abarcava, para mim, a totalidade do mundo. Os silêncios do mundo.

Sobre a fome e a miséria, por exemplo! Pensei o quanto seria importante se essa obra circulasse e fosse instalada, na calada da noite, em meio aos centros financeiros do mundo ou em meio aos bairros mais ricos onde vive, encastelada e absolutamente indiferente ao que acontece fora de seus condomínios luxuosos e fechados, uma ínfima parcela da população mundial, e que concentra em suas mãos quase toda a riqueza do mundo.

Desde o momento em que deixei aquele largo em Bruxelas, e até chegar em casa, em Paris, eu não me lembro de ter visto ou sentido coisa alguma, nem os campos, nem a paisagem humana que me cercava, nem seus sons.

Todo o meu espaço visual e sonoro fora invadido por aquelas esculturas e seus ruidosos silêncios, e que hoje me remeteram a um silêncio específico.

O silêncio de todos nós, brasileiros, diante dessa triste e trágica realidade relacionada à posse da terra, que não mudou desde que esse Brasil é Brasil e que confere aos “senhores feudais” o perpétuo direito de propriedade de uma terra encharcada de suor e sangue.

Sob o aspecto da posse e uso da terra, sai governo, entra governo e o Brasil, enquanto nação, não sai da Idade Média.

Que vergonha!

Escritor.

 

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