Viaje iniciático. – ANARQUÍA EN LA AMAZONIA

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Aparecida en la revista Piel de Leopardo, integrada a este portal.

Estava faltando um livro digno de crédito, um livro de ciência, de paciência e de empatia sobre os índios jivaros. Está aqui. E a dificuldade não era pequena, pois os jivaros prezam ao extremo sua independência.

Disseminados pela alta Amazônia, no Piemonte andino, deslocando-se a cavalo na fronteira do Equador e do Peru, mantêm entre eles relações tão complexas quanto móveis, turbulentas e incessantes –algo que, na ausência de dados teóricos, por muito tempo os manteve à distância de qualquer compreensão extrínseca–.

O belicismo, as «cabeças encolhidas», a zarabatana e o curare durante muito tempo garantiram a má reputação dos jivaros. Sua irreligiosidade, sua desenvoltura sexual –eles são polígamos– e sua anarquia social escandalizaram os primeiros missionários.
Em 1889, o abade François-Pierre escreveu:

«A família jivaro é um lupanar no qual a devassidão mais desavergonhada é exposta sem restrições nem pudor», e, em 1895, o padre Vacas Galindo os descreveu como «materialistas», «sensualistas» e «positivistas extremos».

Aqui, como em outras paragens, o olhar colonial transforma qualidades em defeitos.
As civilizações orais são analfabetas, os homens que andam de pés nus se transformam em miseráveis vagabundos, os não-crentes são tachados de ateus, e mesmo seu saber em matéria de taxidermia e preparações químicas (drogas e venenos) é desqualificado, pois os cronistas não enxergavam neles mais que práticas ocultas, perversos desvios da ciência.

Não mencionemos o nonsense histórico que representa seu sistema social, o grau zero de integração. Sim, os jivaros desafiam as leis fundamentais da sociologia: individualistas sem pátria, anarquistas sem Estado, autarquistas espontâneos que têm a guerra por nervo social, eles souberam tornar viável o invivível «estado de natureza» de Thomas Hobbes.

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Philippe Descola conhece o paradoxo jivaro pessoal e profundamente. Ele parte para o terreno jivaro com a bagagem do acadêmico formado na Escola Normal [em Paris] e o olhar aguçado do estruturalista. Ele vai pesquisar na região do rio Pastaza, no Equador, durante mais de dois anos e meio.

O grupo achuar, o «povo das palmeiras», distribuído em grupos familiares distantes e autônomos, forma uma tribo molecular de cerca de 4.500 indivíduos, mas, devido aos conflitos de fronteira, o etnólogo só irá abordar aqueles que vivem na parte equatoriana.

Insubmissos

Como os xuares, os aguarunas e os huambisas, os achuares são jivaros. Falam um dialeto que os liga aos outros e, pelo estilo de vida, o gosto pelas vendetas e o senso da dívida –sem falar em sua obstinação em viver nos moldes de seus antepassados–, formam o derradeiro bastião dos insubmissos.

Em As Lanças do Crepúsculo, Descola (abajo, der.) lhes rende uma homenagem fundamentada ao mesmo tempo em que declara –com a emoção controlada de um Lévi-Strauss– a parte subjetiva de seu empreendimento.

«A Amazônia desconcerta os engenheiros da mecânica social e os temperamentos messiânicos; ela é o terreno predileto dos misantropos razoáveis que amam, no isolamento dos índios, o eco de sua própria solidão, que são ardentes em defesa dela quando vêem ameaçadas sua sobrevivência, sua cultura e sua independência, não para conduzi-los a um destino melhor, mas porque rejeitam ver imposta a outros a grande lei comum à qual eles próprios sempre tentaram se esquivar».

Em As Lanças do Crepúsculo, Descola (abajo izq.) adota o tom da crônica para melhor oferecer uma aula de etnologia. Procedendo por quadros, sob a desculpa de narrar a vida cotidiana, mostra como a teoria se articula com o vivido. Cada recordação evoca um tema, e cada tema uma reflexão ou o ponto de partida de uma tese inédita.

Essa maneira de proceder, que pode parecer sistemática, possui a vantagem de mostrar o eterno trabalho de aprendiz do etnólogo, a formação de sua sensibilidade e de sua autoridade, sem jamais perder de vista os fatos e os gestos daqueles que ele estuda.
Assim, a primeira qualidade deste livro é sua sutileza. Descola nunca se deixa cair em clichês nem na teoria pronta. Possui o dom de farejar o sentido onde existem apenas fatos.

fotoSe bem que são os achuares que, em última análise, vão lhe emprestar sua lógica e, além do caráter de cada um, das histórias e das anedotas privadas, lhe permitirão apreender um perfil social, uma personalidade –em suma, os mil caminhos pelos quais se interiorizam as regras difusas da comunidade–.

A comunidade? Apesar de sua propensão à discórdia e à atomização, os achuares são ligados a ela pela língua, pelo sistema de parentesco, pela troca de bens, pelas técnicas de caça e de pesca, por sua maneira de viver o tempo em vários registros, por sua crença em espíritos malignos, por seu consumo da droga ayahuasca e até mesmo, na adversidade, pela violência ritualizada.

Apesar de seu voto de objetividade, Descola toma partido, e As Lanças do Crepúsculo, ao narrar uma caçada a porcos selvagens ou recolher os relatos de sonhos e de cânticos votivos, nos apresenta uma verdadeira «defesa e ilustração» do pensamento selvagem.

Descola fala a língua dos achuares. Isso lhe permite atenuar o caráter aproximado das informações que recebe e evitar as fantasias –os fantasmas– do intérprete. Ele recorta e reconstrói o que é dito, para recolocá-lo em cena numa récita cursiva.

A vantagem dessa abordagem é que os mitos, por exemplo, não são «biblificados» ou «vitrificados» na página do livro e que os índios que os relatam não são seres genéricos, mas pessoas que vivem numa dada situação, que têm um nome e que habitam sua palavra.

Parte da paisagem

De passagem, Descola aproveita para dizer que a etnologia não é «um acúmulo empírico de conhecimentos» nem «uma estética do relativismo» nem tampouco «uma hermenêutica das culturas» e que ela nos ensina a amar a humanidade «sob seus outros rostos».

Sem cair no viés autocentrado da «etnologia de si mesmo», Descola não esquece que faz parte da paisagem que descreve: ele se observa observando.

Com mais de 500 páginas, dividido em 24 capítulos, com um prólogo, um epílogo e um post scriptum, As Lanças do Crepúsculo apresenta um inventário quase completo da vida jivaro. O etnólogo toma o tempo necessário para nos apresentar seus amigos, nos conduz às roças e à taxonomia das plantas cultivadas, nos faz assistir diretamente à fabricação de uma zarabatana ou participar de uma pescaria.

As doenças, as trocas, o xamanismo e a morte são evocados com o mínimo de distância que caracteriza o profissional e o discreto senso de teatralidade que qualifica o escritor.
A caça, o bestiário amazônico e até mesmo o status dos cães domésticos: nada é esquecido no livro.

Descola compartilha com os jivaros –que dispõem de 42 nomes diferentes para designar as formigas e distinguem 33 espécies diferentes de borboletas– a paixão insaciável pela zoologia. Podemos imaginar que isso lhe deve ter valido um pouco de estima e muita amizade nessa região.

Nada escapa do olhar do «jivarólogo». Ele observa, por exemplo, que o pirilampo ganha o nome de «yaa», como as estrelas. Ele faz o inventário dos diferentes tipos de discurso e de elocução, que, na conversa ritual, exercem o mesmo papel que o bemol ou o sustenido nas partituras musicais.

fotoApoiando-se nos estudos de sua companheira, Anne Christine Taylor, ele propõe uma teoria nova para explicar as «cabeças encolhidas» (a la derecha**) e faz uma descrição quase pontilhista das mulheres. Também lhe acontece de praticar uma espécie de humor discreto, à maneira dos ingleses.

Para explicar a brevidade das relações sexuais entre os jivaros, escreve: «É verdade que, com a alta concentração de insetos desagradáveis e de plantas hostis, a natureza nessas latitudes não incita ao prolongamento exagerado do amor ao ar livre». Mais adiante, falando do tédio e das civilizações lentas, do tempo ampliado, ele arrisca uma hipótese, sem, entretanto, atribuir crédito demasiado a ela: «Os índios parecem sofrer de tédio tanto quanto nós sofremos –um pouco menos, talvez, graças à diversão que lhes proporcionamos–, e me pergunto se as vendetas que pontilham suas vidas não são, para eles, um modo de, de quando em quando, escapar do cinza do cotidiano». É verdade que essas são duas anotações furtivas.

Hoje os achuares abandonaram a lança e o escudo –eles possuem fuzis–. Muitos deles aderiram à Federação dos Centros Xuares do Equador, organização indígena muito influente no país, e rejeitam o etnônimo «jivaro», termo que é visto como colonial e racista.

O fuzil, tabu para a caça

Isso não impede sua «jivaridade» de se expressar. Prova disso é o fato de que o fuzil, a nova arma de caça e de guerra, torna-se «tabu» para a caça se já matou um homem na guerra. Ele poderia poluir a presa. É preciso livrar-se dele a qualquer preço, trocando-o com alguém da periferia que não tenha tomado conhecimento do conflito.

O etnólogo conta muitas histórias nas entrelinhas, como o costume cotidiano do vômito, a escolha de um «amik» (o amigo cerimonial), o «vampirismo» da mandioca ou o canto dos xamãs, todos momentos raros de etnologia narrativa.

O próprio título, As Lanças do Crepúsculo, mostra que o autor assimilou bem a filosofia antinômica dos jivaros. De um lado, revela a descontinuidade dos dias e a continuidade do tempo, fala do pavor de ver os inimigos mortos retornarem para se vingar; mas também, com a cumplicidade do autor, faz o voto piedoso da sobrevivência e a apologia da esquiva.

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* Comentario publicado en el diario Folha de São Paulo el domingo, tres de setiembre de 2006.

** Pieza del Museo Roscsen, de Córdoba, Argentina (www.museorocsen.org).

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