Carlos Grasioli / Sirvam-se!

"Servez-vous", assim estava escrito, ou melhor, rabiscado como que por mãos trêmulas, num pequeno cartaz improvisado e pendurado acima de uma caixa de papelão, encostada no lado de fora do muro, de forma estratégica, para que dentro dela ficassem a mostra os frutos maduros de abricó, que caiam do galho acima da calçada.

Um tanto surpreso, parei, hesitei um pouco mas acabei me servindo de alguns que, diga-se de passagem, estavam deliciosos.

Estava em Paris, num bairro habitado por imigrantes de diversas nacionalidades. Ao chegar em casa, próxima dali, comentei com meus amigos e fiquei sabendo que já há alguns anos, a velhinha que vive sozinha naquela pequena casa —da qual da rua só se pode ver o telhado— faz esse gesto, quando raramente é vista pelos demais vizinhos. Sobre a vida dessa velha senhora, ninguém sabe nada.

Eu já havia sido tocado por aquele singular e genuíno gesto, e com a informação dos amigos, mais ainda, tanto que se constituiu em tema de reflexão, para mim.

Tão antigo, tão fora de moda, ali, fora do muro, oferecer aos vizinhos e aos passantes alguns frutos do seu quintal, só poderia vir de alguém que conhece a importância e o real significado de tal gesto.

Com certeza, uma pessoa antiga…das antigas.

Acabei voltando no tempo e no espaço, visitando mais uma vez minha infância, essa inesgotável fonte de belas (e também tristes) recordações.  Lembrei-me que toda a vez que se matava um porco em minha casa, a todos os vizinhos mais próximos eram ofertados (palavra que cabe muito bem aqui) pedaços de carne, dentro de pratos que nós, as crianças, distribuíamos entre eles.  Outras vezes era carne de caça ou pesca ou até mesmo, um pão recém saído do forno.

Os pratos voltavam dias depois, com algum tipo de alimento, o que simbolizava agradecimento e, sobretudo, o reconhecimento do gesto.

Da mesma forma, quando nós éramos os contemplados, retribuíamos ao gesto devolvendo o prato com algum tipo de  alimento.

Eu sentia grande e particular felicidade em participar daquele belíssimo e tão significativo ritual, de mais pura e verdadeira generosidade, muito embora eu soubesse, que aquilo que por nós fora ofertado poderia fazer falta na nossa mesa de família pobre e numerosa.

Mesmo confinado num pequeno povoado, uma espécie de fim de mundo, participar daquela dança de pratos era, pra mim, fazer parte de alguma coisa maior. Uma espécie de sentimento genuíno de cosmopolitismo, o mesmo, por incrível que pareça, que estou sentindo agora, nesta viagem, ao tomar trens em diversas direções na Europa ou a me servir de alguns frutos daquela caixa de papelão.

Depois de observar alguns dias, percebi que poucas pessoas se serviam dos abricós e que muitos apodreciam, mas eram sistematicamente retirados e substituídos. A velha senhora repetia esse gesto, ano após ano, dando-se por satisfeita em saber que pelos menos, algumas pessoas apreciavam seus frutos.

Uma espécie de sacerdotisa, de guardiã do fogo, que insiste em manter acesa uma chama que simboliza, mais do que tudo, alguma coisa bela e antiga, da condição humana que aos poucos vai se perdendo.

E essa velhinha é uma velinha que logo, logo vai se apagar.

Porque esse gesto simples e isolado significou tanto para mim?

Talvez porque também, com meus escritos, eu me sinta um pouco essa velhinha, que embora saiba que por falta de tempo ou outras razões poucos correspondam ou se interessem pelos seus frutos, não se sente menosprezada por isso.

Mesmo que uma única pessoa se sirva, mesmo que pra uma única pessoa tenha serventia, já valeu a pena e é absolutamente suficiente para dar sentido ao seu gesto e,  quem sabe, à sua vida.

Eu também, celebro assim e satisfeito, a oferta dos “frutos do meu quintal”, muito embora poucos sejam os que deles se servem.

Celebro, assim e satisfeito, minha própria matança do porco, muito embora poucos sejam os pratos que retornam.

Porque os poucos que retornam, são tão significativos, que me levam a acreditar que vale a pena continuar construindo pontes, com palavras quiçá ilusórias ou pretensiosas. Por querer tentar, com isso, com esse ato de fé, vencer ou preencher os abismos entre as pessoas.

Como a ponte que ajudei construir na minha infância, com pratos que iam e vinham. Como a ponte que aquela velha senhora constrói com seus abricós maduros, colocados no lado de fora do muro, por onde o mundo passa.

Construindo pontes, ofertando, enfeitando a vida, colocando flores, pratos, palavras ou abricós, nos (des)caminhos.

Quem sabe a vida não é só uma grande procissão em direção ao infinito?

Carlos Grassioli, escritor y trotamundo.

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