Carlos Grassioli / Tributo a uma Araci que eu nunca vi

1.113

“Açude míngua,
peixes morrem
e Araci lamenta”              
       
Exatamente assim, com as palavras na mesma disposição é a manchete que recebi de uma amiga, que costuma recortar do jornal e guardar para mim, coisas que julga interessantes.
(Para Eva Souza, minha eterna gratidão).

Segundo ela, estava lá num cantinho, meio perdida, como notícia menor, sem importância, e referia–se a uma pequena matéria sobre a grande seca que assola a região sul.  Dessa vez recortou e guardou para mim somente essa curiosa manchete que além de poética, remete a um tipo de tristeza que, se musicada, caberia e muito bem na voz de Milton Nascimento.

Parece se referir muito mais a um fado do que propriamente a um fato.

Muito embora eu tivesse tomado ciência de sua existência unicamente por aquela manchete, desde lá eu não consigo deixar de pensar em Araci.
De imaginar Araci.

“Mulata forte, canela fina e boa de trabalho,” dizia a patroa.

Tão boa que a exemplo da avó e da mãe, foi criada e trabalhou na grande e antiga casa de fazenda, desde menina e até, como dizem os donos da casa, “já faz parte da família”.

Depois de uma existência toda dedicada ao trabalho servil, finalmente por direito e mérito, o seu premio máximo: Um mínimo salário ao “aposentar–se” com 75 anos de muitas privações e de vida pouca.
 E sem fundo de garantia!

“Mas o que é que uma criatura sozinha, velha e analfabeta, iria fazer com tanto dinheiro? A Tapera tá de bom tamanho, afinal na partilha, ninguém demonstrou o menor interesse. Tem até um olho d’água e ao lado da figueira velha existe aquele casebre que há horas ninguém usa, é só ela dar uma ajeitadinha.”

“É tudo seu Araci,” disse–lhe a patroa num arroubo de “generosidade”.

“Eu só gostaria que desocupasses o quartinho o mais depressa possível, pois que uma nova cozinheira chega do povoado logo, logo. Vê lá no quarto de despejos, tem tudo o que precisas pra montar tua primeira casa.”

E talvez a última, pensou Araci. “Pede pro Gumercindo te levar de carroça, tão pantanoso é o chão que dificilmente um carro chega lá.”

Um alqueire, um olho d’água, uma velha figueira e um casebre,… Ah, e um precioso radinho a pilha , todo seu patrimônio em meio à imensidão do pampa. Nem luz elétrica!

Ali na Tapera, com certeza, viveria a terceira e ultima margem do rio de sua vida.
E sem realizar sua maior fantasia, seu sonho maior… Talvez o único: Desfilar na avenida e na sua escola preferida, a Mangueira.

Tão encantada que ficou desde a primeira vez que viu pela televisão e tão aflita que ficava quando se aproximava o carnaval, que até mesmo a patroa, sensibilizada, a chamava sempre que a Mangueira ia entrar na avenida.
Até o estampado miúdo da chita de seus vestidos era quase todo verde e rosa.

Mas Araci, fazendo jus ao “boa de trabalho”, arregaçou as mangas e devagar, porque a idade exigia, com uma pequena enxada, cavoucou aqui e ali um pouco á esquerda do casebre e na seqüencia, um cercadinho de galhos secos amarrados com cipós e um arremedo de portãozinho.

Depois as sementes e logo, talinhos verdes brotavam do chão.  Mais tarde, moranga, batata doce, couve, todas as ervas de cheiro e tomate miúdo. E em meio à pequena horta, dálias amarelas, gerânios vermelhos e margaridas, suas flores preferidas.

Ganhou da mulher do Gumercindo uma galinha no choco, com os ovos e tudo. Não demorou muito, pintos, e meses depois um galo garboso e algumas galinhas já ciscavam pelo pátio.

Do lugar onde trabalhou uma vida, só sentia falta e muita, do pequeno lago onde gostava de olhar o céu refletido na água e sonhar, como se estivesse sentada na beirada do mundo.

Com a única enxada, foi cavoucando em frente ao casebre, dia após dia, meses após meses, um ano, até chegar próximo a uma pequena ribanceira de onde vertia um olho d’água.  Finalmente, conduziu o fio de água até o buraco cavado e alguns tempo depois, de dentro de casa mesmo e pela abertura da porta, ela podia ver seu pequeno açude que em noites estreladas, como um espelho, lhe permitia, tão curvada que já estava, ver o firmamento sem precisar olhar pro céu.

Duas elegantes garças de dorso acinzentado, pescoço e peito de um amarelo bem clarinho que acabava num azul suave e com um delicado penacho na cabeça, conhecidas como marias–faceiras , já chegavam de manhãzinha e partiam ao entardecer.

Avencas, begônias silvestres miúdas, nasciam espontaneamente na beirada do açude e os filhotes de carpas rosa, tirados do lago do jardim da casa dos antigos patrões e colocados ali, cresciam e se multiplicavam.  De lá, também, trouxe uma muda de nenúfares (pequenas vitórias régias), de cujas flores as pétalas iniciavam brancas no miolo da flor e num crescendo terminavam em rosa forte, quase maravilha que se entremeando a outros aguapés de folhas pequenas e de minúsculas florzinhas brancas, como um bordado, foi se espalhando sobre a superfície da água.

Bem no cantinho, já fora do açude, onde a água em excesso corria como num riachinho, uma tábua foi colocada de forma que Araci, sentada numa pedra rodeada por copos–de–leite, lavava sua roupa enquanto entoava, com voz bem afinada, cantigas de roda e modinhas antigas que aprendera com a avó.

A velha figueira que ficava à direita e um pouco atrás do casebre, até então relegada ao ermo, foi reavivando–se bela e em generosa sombra. Até um casal de joão–de–barro se achegou, estabelecendo residência e se revezando ou fazendo coro aos quero–queros, na tarefa de re–inaugurar os dias e anunciar o anoitecer.

Gastava quase todo o salário em parcas provisões que Gumercindo lhe trazia do povoado, mais algum remedinho, pouco, porque conhecia a medicina das ervas como ninguém. Ah, e pilhas para seu radinho.

E assim foram passando os anos até que veio a grande estiagem, uma seca como nunca dantes.

Sentada na soleira da porta do casebre, Araci lamentava, mas sem perder a serenidade e num silêncio resignado, assistia seu cenário  que era uma beleza desmanchando–se perdendo a cor.

As marias–faceiras foram as primeiras a partir pra não mais voltar.
Depois foi a vez do casal de joão–de–barro que bateu asas e voou.

Conhecidos por sua fidelidade ao chão onde nascem e cada dia mais alarmados, ficaram os quero–queros, como se prenunciassem ou anunciassem, num canto gritado, desesperado e em vôos rasantes, algo grandioso que pudesse estar para acontecer. 

Percebeu que o verde na última folha viva de aguapé, mais o rosa no dorso das carpas mortas e semi–enterradas no fundo do açude, já quase seco, eram as únicas cores que resistiam. E por pertencer a um povo que possui a estranha mania de ter fé na vida, Araci levantou, procurou e achou alguns trocados que conseguiu guardar e encomendou pinceis e algumas latas de tinta de suas duas cores preferidas.

Tão logo recebeu a encomenda, lentamente, hora sentada, hora em pé e em cima duma velha cadeira, com a gravidade de um grande mestre diante de uma tela, entremeando verde com rosa e às vezes misturando–os, Araci foi cobrindo com pinceladas irregulares e generosas, as tábuas velhas e já cinzentas da parede do casebre e a única porta e duas janelas.

Num entardecer daqueles em que o céu parece pegar fogo, exaurida, deu a última pincelada.  Em seguida, afastou–se alguns metros e emocionada, com o rosto banhado em suor… e lágrimas, olhou demoradamente para aquele quadro.

E ali, em meio ao descampado, em meio ao pampa, tão emocionada, tão cansada que estava, sentiu um arrepio, um tremor febril pelo corpo todo, que acabou culminando num pequeno surto convulsivo em que mesclava delírio e deslumbramento. Já meio tonta, começou escutar longe, muito longe, vindo do além mar ou de outro continente, um som de tamborins seguido de um rufar de tambores, que foi se aproximando, aos poucos e cada vez mais. Até que uma fantástica batucada ocupou todo o espaço sonoro.

Com o cabelo –um tufo de algodão branco que destacava ainda mais o negror da pele– salpicado de suas cores preferidas e vestida com seu antigo uniforme de trabalho, já em trapos de tão velho, e agora colorido pelas manchas verde e rosa, Araci esqueceu a idade. 

O chão era todo esmeraldas, tamanho o esplendor!

Totalmente arrebatada, fechou os olhos, abriu os braços saudando e pedindo licença aos seus mestres-sala, os poetas, que por sua vez e com a reverência que só deferem a verdadeiras rainhas, abriram alas para ela passar.

Majestosa, Araci entrou na avenida, com a única alegoria de que dispunha: ela mesma.  Um tresloucado e raro espantalho verde e rosa de pele escura e beleza ímpar, que cantando antigos lundus em nagô, deu início a uma vertiginosa dança circular ao redor do casebre. 

Num determinado momento os pés já não se sentiam ou nem tocavam mais o chão.
Mais do que um destaque, mais do que uma escola, muito mais.
Araci era toda uma nação!
Dançou e cantou até cair de costas e estirada no chão.
E assim deitada, de braços abertos, pernas afastadas,
                                                                           
Araci agora era uma estrela!

Carlos Grassioli es escritor e impenitente viajero.
 

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