Carlos Grassioli.*
Esta crônica de viagem que estou enviando, e que não é ficcional, estava lá no fundo do baú, quase esquecida. Tem início, meio e fim, como este ano que estamos terminando.
Que o sentimento de resgate da esperança, traduzido no final dessa pequena viagem, registrada na crônica, seja o mesmo sentimento com o qual, encerraremos 2009 e iniciaremos 2010.
Façam festa, façam vida!
Era meio dia de um domingo quente de verão, em Bruxelas, quando cheguei ao endereço indicado no bilhete, e eles já estavam lá. Somente eles, mais ninguém. Uma família singular, ruidosa, alegre, de imigrantes africanos, todos vestidos ao rigor de sua cultura. Seis adultos e um menino de dois ou três anos. Três gerações, sob o “comando” de uma belíssima mulher, de alta estatura, voz grave e porte altivo, envolta em panos estampados, de cores vivas, com um imenso turbante ou trunfa, do mesmo tecido, amarrado na cabeça de forma espetacular.
Imensas argolas douradas nos pulsos e nas orelhas, pincelavam e completavam de forma harmoniosa um retrato vivo de uma avó africana e rainha. Um espanto!
Uma pequena marquise nos protegia do sol, enquanto esperávamos pelo ônibus que vinha de Amsterdã e nos levaria até Paris. Longa já era a espera quando a família começou a tirar de dentro de sacolas, frutas e sanduíches, com os quais, gentilmente, de forma calorosa e descontraída, me convidaram. Insistiram e acabei aceitando.
“Sou brasileiro”, disse, e, não sei exatamente por quê, essa informação fez com que me adotassem definitivamente.
Com três horas de atraso, finalmente o ônibus chegou. O motorista visivelmente mal humorado, tratou-nos de forma truculenta e nos constrangeu de forma tal que entramos no ônibus em silêncio, ocupando imediatamente nossas respectivas poltronas.
A família ficou espalhada: a avó ocupou sozinha uma poltrona quase na frente, separada da minha pelo corredor; os outros ficaram mais atrás. O menino, distante da avó, começou a transitar dentro do ônibus, provocando uma absurda e injustificável ira do motorista, que reclamava em todo momento.
O clima foi ficando tenso, até que a criança sentou no chão do corredor; e antes mesmo que a mãe o apanhasse, o motorista freou, abruptamente, e já em pé, com o dedo em riste, começou a agredir verbalmente e de forma absolutamente desrespeitosa a família africana.
Entre outros descalabros, ele dizia que se eles não sabiam se comportar de forma civilizada, que se no país deles, (“Chez-vous”, em francês), eles não se importavam com o chão sujo, que então voltassem e ficassem lá —porque aqui, no nosso país (“Chez-nous”), isso é inadmissível—, completou ele.
A avó, com delicadeza, mas sem perder —um instante sequer— seu porte altivo, tentou, inutilmente, tomar a defesa da família. Os demais passageiros, todos europeus, no mais absoluto silêncio. Ninguém se manifestava. Tantos anos viajando pela Europa, era a primeira vez que eu assistia ou presenciava esse tipo de manifestação explicita de preconceito onde se mesclava racismo e xenofobia.
Minha fúria foi crescendo tanto, que ao tentar levantar da poltrona senti tontura e caí sentado. Levantei de novo, agarrei–me na poltrona e, num francês nem tão fluente, mas bem claro, comecei a gritar mais alto que o motorista.
Com o dedo em riste, em direção a ele, manifestei todo meu repúdio ao seu comportamento, dizendo, entre outras coisas, o quanto era suja e criminosa a língua dele, e que uma pessoa absolutamente desqualificada como ser humano, como ele, não poderia estar dirigindo um ônibus. Depois, ajoelhado na poltrona e virando-me para trás, manifestei, também em viva voz, meu espanto, dizendo aos demais passageiros que seu silêncio “civilizado” revelava, se não o consentimento, uma indiferença tão criminosa ou mais , que os colocava em pé de igualdade com o condutor.
Tentando me intimidar, o motorista dizia que eu não deveria me meter num assunto que não me dizia respeito, ao que eu respondi, que não só me dizia respeito como a todas as pessoas que estavam dentro do ônibus.
Voltando ao assento, ele deu prosseguimento à viagem deixando no ar um silêncio sepulcral e constrangedor.
Ninguém —nem mesmo a criança, visivelmente assustada— emitia qualquer tipo de som ou ruído. A avó, com uma expressão de infinita tristeza, olhou pra mim e, em voz baixa me agradeceu várias vezes.
Um sol de outono, de fim de tarde, cobria de dourado toda a paisagem e estávamos quase chegando em Paris, quando o silêncio foi quebrado por uma pequena frase musical, de cantiga de roda, que a avó africana, na sua língua de origem e imitando voz de criança , soltou no ar em tom baixo e voz suave, bem afinada.
Imediatamente uma voz infantil respondeu lá de trás, com outra frase musical de palavras diferentes. Era o neto.
A avó então cantou outra frase, e quem respondeu agora foi a mãe do menino. E assim sucessivamente até que, num tom baixo de quase murmúrio, os demais membros da família, formando um pequeno coro de afinadas e diferentes vozes, respondiam às frases musicais cantadas pela fantástica avó.
E então, um suave e belíssimo coro de vozes, literalmente de outro mundo, acabou invadindo todo o espaço sonoro do ônibus.
Eu olhei pra trás e percebi que as expressões dos demais passageiros iam mudando, descontraindo; uns, inclusive, com ar de espanto. Emocionado, baixei a cabeça para que as lágrimas caíssem soltas e em abundancia.
Depois da tristeza, a beleza, e finalmente o milagre da alegria manifestada por vários passageiros, que, ao deixarem o ônibus, alguns —inclusive o motorista— pediam desculpas à Avó Rainha; outros, agradeciam.
Diante de tanta nobreza e elegância, só me coube, num gesto de quem reverencia uma divindade, agradecer infinitamente àquela fantástica criatura por me proporcionar aquela inesquecível e triunfal entrada na Paris de que tanto gosto.
(Outubro de 2005).
* Escritor.
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