Um ilustre e raro visitante
Carlos Grassioli.*
Enquanto dentro de casa um gemido de cão sem dono se insinuava, mas silenciava, escutei lá fora, vindo do mato alguns metros distante do meu quarto, um lamento, um uivo que começava suavemente e num crescendo atingia o tom mais alto e agudo. Um som que eu nunca tinha escutado até então e que, como uma lâmina afiada, cortava o silêncio da noite. Depois de uma pausa, de novo aquele ganido me causando arrepio.
Era uma noite escura e fria de inverno, eu em casa sozinho e enfrentando a dor do luto por duas perdas, de meu pai e minha mãe, tão próximas uma da outra e que, entre outras coisas, me davam uma dimensão muito real. Se não de minha solidão, mas do meu viver. Salvo minha casa, meus familiares e amigos espalhados por aí, não tenho mais nada nem ninguém, em especial, que me prenda a lugar nenhum. Um sentimento forte de soltura, uma sensação estranha de liberdade assustadora.
Paradoxalmente, a morte dos meus pais, me empurrando mais do que nunca para a vida.
Era o que eu sentia e sobre o que eu refletia naquela noite, quando escutei aquele uivo, aquele lamento que não deixava dúvida quanto sua intenção ou significado.
Senti inveja de não poder manifestar também, tão veemente, minha queixa noturna de bicho-homem solitário e assustado por tocar uma espécie de liberdade plena.
Nessa mesma noite, meus sonhos me levaram a lugares distantes, às isoladas estepes do Cáucaso. Como se eu tivesse entrado em algum romance, em algum livro de literatura russa. Na noite seguinte e nas subseqüentes, o estranho uivo se repetia, denunciando a presença de algum animal não comum nas redondezas.
Costumo colocar ração e frutas picadas sobre a grande pedra em frente à varanda, que funciona como uma espécie de observatórios de pássaros . Um atrativo a mais no bonito lugar onde moro, para mim e minhas visitas.
Ao entardecer daquele dia, já não se via mais nenhum pássaro quando, para meu espanto, vi sobre a grande pedra, saído da mata e comendo os restos de frutas, um pequeno e belíssimo lobo. Nunca tinha visto, nas redondezas, um animal como aquele.
Fui até a porta da varanda que fica a alguns metros da pedra. Abria-a com todo o cuidado. O pequeno animal percebeu e se colocou em postura de alerta, mas não saiu do lugar e estático enfrentou meu olhar sem vacilar. Eu parado, ele também. Comecei a emitir algum som com a boca e me movimentei lentamente em direção a ele que ficou parado, até o momento em que decidiu, num andar calmo e elegante, entrar de novo na mata. Percebi que dentre as árvores ele me observava. Claramente um tipo de relação já se estabelecia entre nós.
Fui até a geladeira, peguei um pedaço de frango, coloquei sobre a pedra e voltei à varanda, com o coração batendo diferente.
Ele correspondeu de imediato, saindo de dentro do mato e já sobre a pedra, em frente ao pedaço de frango, antes mesmo de cheirar, ele ficou parado um bom tempo, olho no olho comigo. Iniciei, então, uma espécie de comunicação com palavras tentando faze-lo sentir que eu não constituía nenhum tipo de ameaça.
Minutos depois, calmamente ele baixou a cabeça cheirou a carne e lentamente começou a comer. Ao terminar levantou a cabeça e de novo olho no olho comigo, ficou assim um bom tempo, até baixar a cabeça como quem agradece e logo em seguida desaparecer no mato.
Surpreendi-me tocado por um tipo de emoção nova, desconhecida.
Fiz uma rápida e imediata pesquisa na internet e constatei tratar-se de um graxaim do mato, uma espécie de lobo de pequeno porte e as fotos confirmavam aquilo que eu já havia pensando, era um filhote.
Começou a vir regularmente ao entardecer. Inclusive às vezes, de manhã bem cedo ao acordar eu o encontro sentadinho em cima da pedra, sobre as duas patas traseiras e com as patinhas dianteiras elegantemente colocadas na frente, com um porte soberbo e com o olhar direcionado para a porta esperando que eu apareça. Decidi dar-lhe um nome, quase óbvio, Wolf.
Num outro entardecer, para minha grande surpresa, apareceu junto com ele a mãe, que tem quase o dobro do seu tamanho. Já costumo deixar uma pequena bacia branca, esmaltada sobre a pedra onde ele come sua ração diária, enquanto fico sentado e próximo a ele “conversando”.
A mãe tomou a frente, cheirou a bacia, comeu um pouco e em seguida entrou e de dentro do mato ficou observando aquele ser estranho, emitindo sons também estranhos e que já se aproximava a menos de dois metros da sua cria. Como se tivesse vindo para se certificar de que o filho não corria risco nenhum.
Ao que parece ela não só confiou como me confiou seu filhote, seu lobo menino, pois só apareceu mais uma ou duas vezes, comportando-se exatamente como da primeira vez e depois desaparecendo. Mas quando ele está ao redor da casa ou comendo sua ração, ela emite ganidos de dentro da mata, deixando clara sua presença, sinalizando talvez algum tipo de ameaça.
E ela tem razão, o que estou fazendo é uma tentativa clara de torná-lo cativo, contrariando dessa forma sua natureza, seu instinto selvagem de animal livre.
O alimento por mim garantido diariamente, já implica, sem sombras de dúvida, no cerceamento da sua liberdade.
Mas vou prolongar um pouco mais esse único, raro e indizível prazer, essa experiência impar, de pela primeira vez na vida estabelecer relação com um animal selvagem.
E Wolf, meu ilustre visitante, o belo lobinho gris, com uma mancha preta que cruza todo o dorso desde a cabeça até o final da bela e peluda cauda, e com um olhar de lobo menino já está ali, sentadinho na pedra, sobre as patas traseiras, com as pequenas patas pretas dianteiras elegantemente colocadas na frente, esperando pela comida.
Esperando por mim!
O que nos difere, fundamentalmente, é que ele afia os dentes e ataca quando está com fome. Eu, como todo ser humano, também afio os dentes mas não preciso estar com fome para atacar.
Alguma coisa me diz que não é só empatia ou simpatia que me ligou a esse animalzinho selvagem. Afinidade, talvez. O lobo é, normalmente, um bicho solitário que escolhe o isolamento, a solidão como forma de resistir a qualquer tipo de cativeiro.
Nunca consegui chegar tão perto a ponto de tocá-lo, é absolutamente arisco e veloz…
Como eu!
* Escritor.
Imagen: Carlos Grassioli