Um pé na soleira / reflexões sobre viagens

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Carlos Grassioli.*

“A possibilidade de ter esse trânsito, de ir e voltar, eu acho boa.
É como você mudar de  óculos, um para ver de  longe e outro para ver de  perto“.
Chico Buarque.       

Não existe, pra mim, melhor plano de saúde do que um plano de vôo.

Viajar ou escrever é sair da seara privada. Porque é quando sinto, de fato, que meu destino, mesmo num breve  espaço de tempo, deixa de ser cronicamente privado e com isso me consolo de me saber menos escravo da própria mesquinhez (que é o risco que se corre quando se escolhe viver só). E sob esse aspecto, sair ou ficar “fora de si”, de tempos em tempos é de suma importância.

Nas viagens, como na vida, o meu andar é solitário. E dessas viagens solitárias – que me proporcionam um prazer incomparável, consciente do quão importante é o despir-se de todo e qualquer preconceito, de qualquer idéia prévia, ampliando com isso, e infinitamente, a capacidade de se surpreender – aprender, VER, talvez seja a maior lição que eu levo.

Aprender a ver ou apreciar uma obra de arte, por exemplo.

Li um livro, há muito tempo atrás, onde o autor, numa certa altura, aconselha ou sugere um olhar mais contemplativo, mais atento, sem o qual não se podem ver determinadas nuances de algumas obras de arte, principalmente nas pinturas em tela, referindo-se, em especial, a uma espécie de solidão expressa em alguns rostos pintados pelos grandes mestres.

Havia esquecido totalmente disso até um dia em que eu olhava atentamente uma belíssima tela, de um dos santos negros pintados por Rubens, numa igreja da Antuérpia, na Bélgica.

Invadido por forte emoção, lembrei-me, naquele instante, tantos anos depois, do recado do autor, na medida em que eu sentia nitidamente que alguma coisa havia mudado no meu olhar. Como se uma luz nova se tivesse acendido, revelando, ou melhor: desvelando e evidenciando, a profunda solidão expressa no rosto de São Benedito. Uma solidão que começava na alma, externando-se no rosto, modelando-o. E terminava na moldura. Porque era a solidão particular dele. A solidão de São Benedito. Jamais vou esquecer!

Um fato curioso que acontece também e somente quando estou viajando em países de língua estrangeira, uma espécie de reconciliação com o inconsciente, é a deflagração de um processo de sonhos.

Uns, que mexem diretamente com a memória mais remota, transportando-me a lugares e pessoas de um passado tão distante e de cuja existência havia me esquecido totalmente.

Outros, que me surpreendem pela clareza de seu significado, como por exemplo, há um mês, em Buenos Aires, quando sonhei que visitava alegremente meus pais, mesmo sabendo que já haviam morrido. Era um dia de sol e os dois estavam sentados na varanda de uma casa nova, ampla, que eu teria dado a eles e com isso realizado um antigo sonho (que de fato nunca realizei).

Antes de me despedir, insisti pra que me confirmassem se realmente a nova casa era de seu agrado, obtendo respostas efusivas de plena satisfação. Ao chegar no portão olhei pra trás, para o último aceno, e, pra minha surpresa, lá estavam os dois felizes e satisfeitos, acenando alegremente, sentados na velha varanda da mesma antiga e pequena velha casa, de onde eles partiram para a noite infinita.

Viajar é mudar o cenário da solidão, sentencia o poeta Mário Quintana, o que pra mim dá um sentido ainda maior à viagem. Porque eu penso que viajar é mudar, além do cenário, a perspectiva da solidão, fazendo com que ela, dependendo das circunstâncias, assuma proporções maiores ou menores. Em ambos os casos, sinto sempre um prazer muito grande e particular de ter tirado minha solidão de casa, levando-a  para passear por aí, pelo mundo afora.

Na última viagem que fiz para rever meus familiares, ao passar pela cidade onde nasci e onde viveram e morreram meus pais, encontrei um sobrinho, que ali também nasceu e vive; ele costumava visitá-los quase que diariamente quando vivos e me falou sobre uma dessas visitas, comovendo-me às lágrimas. Ao encontrar minha mãe, bem velhinha e já quase cega, sentada na varanda e folhando, talvez pela centésima vez, os livros de todas as cidades por onde eu passava, que eu regularmente comprava para ela (espécies de guias turísticos,  de boa qualidade, muito bem ilustrados com fotos dos lugares mais famosos), ele comentou: “Vó, de novo vendo os livros das viagens do tio?". Ao que ela respondeu:

"Meu maior sonho sempre foi o de conhecer o mundo e eu não tive essa graça. Mas tive a graça de ter um filho que está fazendo isso.
Então, agora, eu vejo o mundo através dos olhos desse meu filho".

Só por isso já valeu a pena ter mudado, por diversas vezes, o cenário da minha solidão.

Próxima parada: a Europa… o mundo.

Sim, porque o mundo, vasto mundo, começa, pra mim, imediatamente ao primeiro passo fora da soleira da porta da minha casa, na qual, ao sair em viagem, coloco sempre, e primeiro, o pé esquerdo.

Pra com o direito pisar no mundo, com a mesmíssima emoção da primeira vez.
Mas antes disso, me certifico, mais uma vez, de ter deixado em casa todo e qualquer resquício de preconceito e intolerância.

E só então eu abro bem os olhos, os ouvidos, o coração…                               
… e fecho a porta!

* Escritor (y vajero).

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