Uma ceia orgânica

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Carlos Grassioli.*

Imagino que Deus, além de uma necessidade e uma projeção humana, deve funcionar, assim como a arte, como uma espécie de último refúgio antes da loucura. Menos pra um ateu.

Mas nem por isso vou precisar inventar, ou projetar, um pra mim. Minha loucura, às vezes, próxima do tormento, é inofensiva, mansa, como a dos poetas. E se preciso, como agora, me salvar, entre outras coisas,  de mim mesmo, da introspecção excessiva, eu pego a estrada… ou então escrevo.
Filhos, não gerei; mas arvores, plantei e comecei a escrever um livro.

Será o único, mas que espero faça sucesso como o da “Menina que corria atrás do vento” ou da “Menina que roubava livros”, ou de outras tantas meninas , que roubam isso ou fazem aquilo e que dão títulos a Best Sellers. Sem sair da minha seara, mas apostando na mesma “fórmula”,  a minha será “A menina que comia moscas” .

Um dia desses alguém me escreveu, perguntando, entre outras coisas e num certo tom de deboche e ranço acadêmico, se eu sabia usar corretamente o plural majestático e se me incomodava o fato de o que escrevo ser considerado arte menor. Por isso, “ fica a menina a comer moscas”, enquanto experimento  uma resposta na altura… do meu alcance.

Meu plural, que é singular, (porque sou eu escrevendo e não nós), é modestético, e tão simplético que nunca se atreveu a reivindicar algum tipo de pompa.

Quanto a ser “laureado” de artista menor, não me incomoda, nadinha. A licença poética, na sua infinita generosidade, me engrandece e me deixa absolutamente à vontade para (d)escrever, se não o que eu vejo ou sinto, mas como eu vejo e sinto as coisas, a vida… aceitando, e com a dose certa de humildade, o ínfimo ou papel nenhum no cenário da palavra escrita.
 
Muito cedo, criança ainda, descobri, em meio a tudo, o que significa estar consciente, plena e às vezes, insuportavelmente vivo: um jeito de driblar o infortúnio, inventando, criando, apostando – e com frequente sucesso- numa alegria e numa vontade genuína de viver. A arte, a imaginação e o humor irreverente sempre me foram infalíveis e eficazes colaboradores, sobretudo no acabamento desses pequenos quadros de experiências vividas, que trago, sempre, pendurados na parede da memória como forma de manter um mínimo de coerência entre a pessoa que fui e a pessoa que penso que sou, ou gostaria de ser.

Sou diplomado unicamente em matéria de viver. Por isso escrevo sem enxertos, sem exotismos, e também por isso sei, de antemão, que minhas palavras, se não agradam como literatura, quem sabe, e simplesmente, o possam por um jeito particular, pessoal e orgânico, de (des)organizá-las, numa espécie de espontânea, respeitosa mas irreverente e despretensiosa desconstrução do texto acadêmico.

Sem método algum, sim, eu escrevo; mas com soberana vontade de criar, de fazer vida, como o faz meu vizinho com a verdura e o legume, que me oferta às antigas, através de gesto generoso e simples, e que são plantados na terra, simplesmente e com um excelente adubo natural, do qual me utilizo, para melhor ilustrar minha resposta: o resíduo do pasto que entrou pela boca e saiu pelo cu da vaca.

Não costumo, e por vocação, usar nas minhas palavras nenhum tipo de aditivo, muito menos de defensivo. Por isso me contento se passar, por meio delas, som, forma, cor, cheiro e sabor próprios e particulares. Como o legume e a verdura, alcançados por meu vizinho, que têm gosto único, de beterraba e de rúcula, e que não pretendem mais, enquanto alimento, do que a gratidão de uma mesa e cerimônia simples. Dispensam, e propositalmente, pratarias e até mesmo uma simples colher, pra que possam ser sorvidas e absorvidas, com sucesso, através dos cinco sentidos.

Embora persiga um mínimo de requinte, escrevo in natura, simples, por vezes áspero e também, como agora, palavras que pretendo orgânicas,  se exalarem o cheiro morno e agradável do alimento devolvido, neste exato momento, à terra, na forma de estrume fresco, pela vaca que pasta tranquilamente, logo ali na minha frente, no gramado verde, tendo ao fundo o mar e o céu em azuis límpidos e distintos, num fim de tarde que acolhe e conforta enquanto me envolve numa luz calma de sol poente e de temperatura amena, primaveril, prenunciando o sossego resignado de mais uma noite solitária que me espera depois de um dia que, se visto sob uma perspectiva zen, pode ser considerado perfeito, completo e imprevisível.

E justamente por não ter acrescentando nada, absolutamente nada de novo e extraordinário, nem naquilo que vi e que vivi, nem naquilo que preparei e comi.

Nem no que escrevi, embora me sinta salvo ao final de mais um dia e mais um ano, por ter escrito, por ter caminhado.
E foi com os mesmos pés que andaram e as mesmas mãos que escreveram que preparei esta ceia orgânica, pisando, amassando, adubando para, finalmente, lavar com terra minhas palavras, antes de humildemente servi-las.
                                                                                                                     Praia da Gamboa/SC,
dezembro de 2010.


* Escritor.

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