Festejos, reflexiones… Oração pra ser uma velhinha bem legal no próximo ano

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Carlos Grassioli.*

Para minha amiga Vera Bicca, pela chegada dos 60.

Eis-me aqui, ó bom e dulcíssimo Senhor; de joelhos me prostro em vossa presença e vos peço e suplico com todo o fervor da minha alma:
Livrai-me da tolice de querer ser, no próximo ano, aquilo que nunca fui.  Santa, por exemplo. Nem árvore muda depois de velha!

Por favor, Senhor, eu só quero ser mesmo uma velhinha legal, nem santa nem diaba.  Um pouco safada, isso sim. Afinal, Senhor, diante da absoluta crise de valores pela qual o mundo em que vivemos chafurda,  o que eu posso garantir – e até por uma questão de princípios- é que  não vou abrir mãos dos meus princípios; já  exigir, na minha idade, excesso de  escrúpulos é  pedir demais, pois não, Senhor?

Para o ano, Senhor, embora eu saiba que “gosto não se discute”, (o que faz com que muita gente passe a vida comendo só bife com batatas fritas ou , no máximo, um miojo, pra variar),  permiti-me,  considerando minha idade avançada , discutir pelo menos o mau gosto. E em alguns casos, execrá-lo.

Para o ano, também, Senhor, eu quero poder dizer mais não e menos sim.
Não, por exemplo, a qualquer tipo de violência que atente contra a vida.     Um NÃO  bem grande à ignorância insana que, entre tantos outros males, insiste em perpetuar o preconceito e a desigualdade de direitos entre os humanos.

Não, também, Senhor  à enxurrada de mensagens que revelam tão somente o vazio existencial das pessoas que se auferem o direito de compartilhá-la comigo através da internet.

E, por favor, Senhor: auto-ajuda não!…Só uma ajudazinha, é claro,  pra que eu possa continuar dirigindo meu auto.

E ajudai-me também se eu tiver que falar mal de alguma pessoa que eu não gosto – daquela zinha, por exemplo, que o Senhor sabe que eu odeeeeeeeio; afinal, embora velha, continuo cada vez mais humana.
E, também, por ser humana, permiti-me não silenciar sobre minhas dores e doenças… Ah! E que eu continue tendo acesso livre aos meus planos de saúde preferidos: os planos de vôo!

Sobre a questão da memória, eu  sei que o processo é irreversível, mas  existe um tipo de constrangimento do qual poderíamos ser poupadas e que é  muito comum nas pessoas da minha geração. Causa-nos grande angústia e tem a ver com o fato de reencontrar, por acaso, anos depois, pessoas conhecidas com as quais partilhamos no passado até  um certo tipo de intimidade, e muito embora nos lembremos de muita coisa sobre ela, como que por ironia esquecemos, ou melhor, apagamos da memória o seu nome. E ficamos cara a cara com ela… patinando.   

Sobre isso, sabendo que o vosso Poder é infinito, intercedei a nosso favor, Senhor.  Fazei com que as pessoas, para o ano, passem a  usar um crachá no peito, com seu nome… em letras de molde grandes. Tão simples e tão prático, pois não, Senhor?

Ah, Senhor, antes que eu me esqueça: livrai-me daquele tipo de apatia, comum nos velhos normais e mais grave ainda nos velhos precoces; aquela que contagia até as emoções  e que não é nada mais que um refúgio na fuga de si próprio. Um jeito calhorda de ser deixado em paz; e o mais grave é que acaba culminando na morte do desejo.

Eu não quero, Senhor, porque velha e vovó, ver a uva.
Nem o ovo!
Eu quero sim, sempre e de novo, o novo!

Em síntese, Senhor: para o ano eu só quero continuar sendo, se não  exatamente o que sempre fui,  o que eu sempre tentei  ser: o mais próximo possível do que se pode considerar um ser humano verdadeiro.

Se nada disso for possível, na Vossa infinita bondade e sabedoria havereis de concordar comigo que agüentar de cara, no osso do peito, vai ser muito difícil, quando não impossível.

E eu sou diabética, Senhor, e nem um traguinho me é permitido.

Por isso, então o que eu Vos peço e suplico é o mínimo: que para o ano sejam tomadas medidas eficazes contra o crime organizado. Uma delas, a mais importante, talvez, a descriminalização da maconha. Sim, Senhor! Estou cansada e velha demais para continuar tomando as drogas permitidas e com isso engordando os cofres da indústria farmacêutica, até porque rivotril, fluoxetina e o escambau, que eu saiba, não curam a dor da alma.
Liberai, Senhor, de forma séria e responsável, e se for o caso, com controle do tipo tarja vermelha, venda controlada ou coisa que o valha…

E pra terceira idade, que não é a melhor idade porra nenhuma… Aí, né, Senhor… libera geral… e pelo sus!  Aí, então, eu prometo que vou rezar tooooodas as noites.

Mas se nem isso for possível, e  com isso eu constatar  que definitivamente o senhor  não me ama, que o senhor não me quer e  nem me chama de bodeler, que não manda nada mesmo, nem pode merda nenhuma e que  o mundo, a vida, tudo vai continuar igual… ou melhor,(ou pior) desigual,  então eu  juro, aqui, de joelhos na vossa presença, que vou ser, para o ano, além de ranzinza e rabugenta,  um velinha pra lá de  ilegal!  

Mais ainda:  uma velhinha literalmente tri:  punck, Hard e Gótica. Vou arrepiar o cabelo, vestir uma saia beeeem justa, calçar botas de cano longo, tudo em couro preto, fazer uma maquiagem exótica, me encher de piercings e correntes.  Vou chutar o balde, o pau da barraca, os culhões do bispo… do papa.  Vou soltar a cachorrada toda.
Vou soltar a fera, me aguarde!

Ah, e a camiseta, preta já esta pronta, tendo na frente e nas costas, escrito, em inglês, pra ser mais in ou menos out e em letras garrafais, brilhantes os seguintes dizeres:

Fuck you my Lord!

Amém.

Praia da Gamboa, dezembro de 2009.

                                                

*  Escritor.

 
       

 

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