Carlos Grassioli / Ermo

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Não é através da hipnose, de centros espíritas ou de terapias alternativas que entro em contato com vidas passadas. Mesmo porque, não acredito nisso. São taperas, lugares ermos, ruínas, casas velhas, vazias, abandonadas ou casas muito antigas que me remetem ao que eu poderia entender como vidas passadas.

“No seu aparente silêncio, o passado conta sua história”
(A.D.)

Como se fosse vocação, desde criança me sinto atraído por esses curiosos espaços que pra mim, estão sempre envoltos de uma poética misteriosa, quase mística.

Toda vez que entro ou passo por um lugar desses, onde a presença de um tempo passado é literalmente palpável, eu, invariavelmente, sinto uma sensação muito forte de que esse lugar,mesmo que tenha abrigado um dia, um único ser humano, está carregado de história e de mistério. E não só nas marcas encontradas no espaço físico, é no ar que eu respiro que sinto, também, a presença forte e indubitável desse tempo passado ali tão presente.

Ao passar pela frente de casas velhas, antigas, um sentimento atávico me remete sempre ao antigo gesto de tirar o chapéu em forma de reverência. Como se estivesse passando em frente a dignas e velhas senhoras.
Algumas, tão silenciosas, parecem que dormem.Outras,“sem dono”, vazias e abertas, porque já não possuem portas e/ou janelas, são as mais generosas e são as legitimas casas de tolerância, é só entrar e “se servir.”

Era outubro, eu fazia uma pequena viagem pelo interior da França quando entrei, sozinho e por acaso, naquela ruína,

Uma magnífica torre construída com cascalhos de rocha, em forma de um cilindro quase perfeito que vai afunilando suavemente, até encostar no telhado cônico, de ardósia, é a parte frontal, não de um castelo, mas de um belíssimo e velho moinho em ruínas.

Como se fosse o cartão de visita ou a porta de entrada daquele inesquecível lugar, daquela antiga morada onde tudo sugeria tempos idos.

O rangido da engrenagem enferrujada da porta de entrada denunciava, numa língua estranha,num lamento secular,o abandono, o ermo. Lá dentro, ao caminhar, todo o cuidado é pouco e qualquer vacilo pode ser fatal. Pelas antigas e grandes janelas de vidros despedaçados, a luz amarela do sol poente de outono, iluminava suavemente todo aquele curioso espaço, transpassando, camada sobre camada, as finíssimas teias que mais pareciam delicados véus ou rendas, bordados ou tecidos por dedos de mãos invisíveis de velhas fiandeiras.

Essas camadas superpostas, cobriam também, moveis, ou pedaços de moveis, objetos velhos, já sem serventia, de todas as formas e tamanhos, mas que serviam como que uma espécie de estranhos e originais cronômetros.

Ali dentro, mais de um século já havia passado e a maior parte do tempo, pelo que soube, no mais absoluto abandono, no mais absoluto silêncio.

Invariavelmente acabo carregando comigo, num compartimento especial da memória, esses espaços e seus respectivos silêncios.

E toda vez que me reporto em pensamento a um deles, o silêncio surge e me transporta de novo e por inteiro àquele lugar. Como num passe de mágica, ele tem o poder de apagar o tempo e acender, simultaneamente, uma luz que ilumina todo esse compartimento, ao qual eu chamo de quarto de despejos da memória.

No início do mês subseqüente àquele outubro, ao retornar ao Brasil, por acaso também, aceitando o convite de sobrinhos que vivem em Santo Ângelo, visitei pela primeira vez as ruínas de São Miguel das Missões.
Era um entardecer luminoso de primavera e lá quase não havia ninguém.
Eu não fazia idéia de tamanha beleza e magnitude, palavras que cabem muito bem aqui.

É absolutamente forte a presença de vidas passadas e a presença da história. Mais de duas mil almas indígenas dotadas de uma inocência original, ali viveram e com mãos morenas, cor de cuia, construíram, com arte, requinte e acima de tudo com humanidade aquele fantástico cenário, agora aos pedaços porque destruído com crueldade, por mãos brancas de além mar, nem tão humanas assim.

Caminhávamos em silêncio e não poderia ser de outra forma. Meus queridos acompanhantes manifestavam, claramente, sua satisfação em ver expressa no meu rosto, uma espécie de arrebatamento que é exatamente o que eu sinto sempre que tenho o privilégio de caminhar sobre a história. Se de um povo, de uma nação, de uma família ou de uma única pessoa, não importa.
São espaços onde a palavra sagrado,assume seu significado maior. Espaços dignos, portanto, do mais absoluto respeito. São, para mim, verdadeiros santuários, onde tudo pode ser visto, mas nada deve ser tocado.

Ao silêncio da ruína, das velhas casas abandonadas, procuro sempre corresponder com meu silêncio. Uma espécie de oração.
Talvez seja a forma que eu encontro de reverenciar e melhor manifestar além do meu respeito, minha mais profunda gratidão aos invisíveis arquitetos dos vazios, dos silêncios.

Os Arquitetos do Ermo.

Escritor.
Praia da Gamboa, dezembro de 2008.

 

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