Carlos Grassioli / Cronicamente musical

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“A crônica é a canção da literatura,” diz com propriedade o excelente cronista e grande conhecedor de música erudita  Artur da Távola. Quem sabe aí, pra mim, uma explicação? Através da crônica, uma tentativa de compensar minha mais antiga frustração: a de ter abandonado, muito cedo ainda, a música, embora eu precise dela, na vida, como preciso da água, do ar.


Para Frans, Amélia e Sarah.

1º movimento
 Quando nascemos com um dom e o abandonamos, muitas vezes por descaso ou descuido, mais cedo ou mais tarde a própria vida se encarrega de nos cobrar ou de nos mostrar que se padecemos do desconforto crônico, parecido ao de caminhar com sapatos  apertados ou  folgados, é porque, de uma forma ou de outra, nos desviamos do caminho que nos fora predestinado.

Mas a vida não é madrasta, ao contrário: é mãe e generosa, sobretudo no campo da arte, permitindo-nos encontrar outras formas, outros canais de expressão, onde podemos – como atores ou simples espectadores – suprir ou preencher essas lacunas.

Sempre que a vida (e muitas vezes de forma surpreendente) me oferece, como simples espectador, faço valer e tiro o maior proveito de toda e qualquer oportunidade de entrar em contato com a verdadeira arte.

Em tempos onde a mesmice e um certo ritmo alucinante têm sido quase a tônica, rareiam-se cada vez mais as oportunidades de contemplarmos com calma e vibrarmos, de fato, diante de uma obra de arte.

A linha do horizonte, esticada, tensa, bem definida e levemente arqueada , separando céu, mar e continentes, era a corda única e bem afinada do violino do jovem virtuose cigano, perdido entre as montanhas de algum país da Europa Central, que executava e cantava, com alma e paixão, uma bela e triste canção que falava de estradas sem fim e de pessoas que vêem o propósito de suas vidas somente no amor e na música.

No final, um som em forma de lamento saído do fundo da alma, alcançou o violino, desprendeu-se, subiu, atravessou os céus, ecoando, espalhando-se pelo firmamento em ondas sonoras e harmônicas, até alcançar a mais recôndita galáxia, despertando  para uma pequena pausa no seu sono eterno o compositor magiar, húngaro, que reconheceu, gratificado, naquele som que o despertava, a última frase musical de uma de suas mais belas composições .

Lá na terra, no pólo oposto ao do jovem cigano, onde a lua cheia refletida no mar era soberana, um único espectador, também de alma errante, completando o elo entre os dois pólos e  prestes a chorar uma tristeza do tamanho do universo, aplaudia de pé aquela rara serenata, transbordando com a sensação da imensidão, da grandeza e da infinita beleza, que o inundou e o resgatou, qual lanterna dos naufragados.

Carlos Grassioli, viajero incurable, escritor.
 

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