Carlos Grassioli / Mundos e fundos
Em casa de novo, depois de dois meses no ofício de estalajadeiro, com o qual me ocupo todos os anos nesta mesma época, quando fico gerenciando uma Pousada por onde passam pessoas do mundo inteiro. Invariavelmente, quando retomo esse trabalho, sinto a mesma sensação confortante (porque é real e não virtual) de que uma janela se abre e que através dela eu posso ver e ter a certeza de que o mundo não acaba ali na esquina.
Embora os contatos sejam rápidos, tanto quem chega de longe como quem recebe, demonstra uma disponibilidade incomum, considerando que ninguém quer perder a oportunidade de, num tempo mínimo, conhecer ao máximo, o outro. Em principio, ambos tem em comum, além da disponibilidade, a mesma expectativa e por acreditarem que esse tipo de experiência vem sempre acrescentar, colocam nela todo seu empenho.
Nesses dois meses, além de alguns brasileiros, contatei pessoalmente com dinamarqueses, ingleses, americanos, canadenses, indianos, um holandês, um austríaco e uma alemã.
O idioma falado, por razões obvias, é o inglês, uma língua que eu não falo, mas que consigo me comunicar e por mais paradoxal que possa parecer, é um obstáculo que acaba sempre resultando positivo. Se a vontade de conhecer e se fazer conhecer, é mútua e soberana, através de um esforço, também, mútuo a comunicação acontece, culminando sempre numa experiência rica, prazerosa e divertida.
Uma experiência muito importante no plano das relações humanas, mas para que ela aconteça em sua plenitude, é requisito básico e fundamental, tanto pra quem chega como pra que quem recebe ou alberga, estar totalmente despido de todo e qualquer tipo de preconceito.
Mas em tudo o que fazemos ou por onde andamos levamos conosco nós mesmos. Talvez e justamente em determinadas ocasiões especiais, é quando somos, naturalmente, e mais do que nunca, nós mesmos.
Por isso, em meio ao trabalho, quando me preparava para receber um grupo de pessoas de nacionalidades diversas, acordei um dia, com uma tristeza profunda que vinha de longe, de muito longe no tempo. Uma tristeza de Manuel Bandeira…de querer morrer um pouco.
Mudança de estação pra mim sempre significa alteração, sobretudo do sono.
Na noite anterior a esse dia, em determinados momentos eu não sabia se estava dormindo ou sonhando acordado.O sonho, uma espécie de delírio, remetia a um passado distante, como se voltando, eu pudesse consertar coisas não resolvidas a contento. Ou procurando no passado elementos que explicassem a falta de sentido do presente, porque tudo o que fazia naquele dia carecia de sentido essencial, embora o cenário e tudo o que eu havia feito no dia anterior e que fez sentido, fossem exatamente os mesmos.
Eu sabia que era passageira e que umas lagrimazinhas viriam a calhar. Mas nada, era uma tristeza seca!
Enviei um email á alguns amigos que me conhecem “amiúde” e que, de imediato, corresponderam, como sempre, de forma que me deram a certeza de não estar sozinho no desalento.
A continuação eu deixei por conta da vida e já de noite, sozinho, quando caia uma garoa fina, acompanhada de um vento frio, enquanto refletia sobre a súbita tristeza daquele dia, eu fazia tempo antes de ir ao aeroporto (30 km da Pousada) esperar a chegada de um hóspede com quem eu havia trocado alguns emails em inglês, sem saber, se quer, sua origem e que estaria chegando em torno de meia noite.
O vôo atrasou e eu já com sono e com frio, fiz um esforço para, no mínimo, ser gentil com o desconhecido que chegava.
Zeff Kapoor é o nome dele e pra minha surpresa, ele falava, fluentemente francês, facilitando e muito a comunicação.
Um indiano simpaticíssimo que, já no primeiro contato, demonstrou ser uma pessoa especial. Trabalha para a PAM (Programa Alimentar Mundial), uma organização mundial, ligada à ONU. Mora e trabalha no Iémen, o menor e mais pobre país árabe. Conhece toda a Ásia e a África. Já morou e trabalhou em lugares inimagináveis. Seus pais vivem em Londres e sua família (mulher e filhos) no Curdistão onde, segundo ele, estão um pouco mais seguros.
Primeiro foi ele quem perguntou e queria saber sobre o Brasil. Influenciado pelo desalento, imediatamente desfiei um rol de queixas, sobre a questão social, corrupção et..etc.
Ele, na sua vez, não falou de seu país de origem porque, na verdade, nasceu na Índia e desde criança teve uma vida nômade.
Sem nunca ter vivido no ocidente, Zeff me falou de um “outro mundo” e que ele bem conhece.
Inevitavelmente, tudo começa a se tornar relativo, quando falamos com alguém que vive e viveu sempre dentro desse “outro mundo”, onde, por exemplo, dias antes de deixar o Iémen, um atentado da Alkaeda, ao lado de onde ele trabalha, tinha vitimado um médico alemão e duas enfermeiras amigos seus.
Passamos três dias juntos e chegamos a uma feliz constatação de que tínhamos afinidades suficientes, porque fundamentais, para uma verdadeira amizade, tanto que em nossas palavras de despedida estava explicita a vontade mútua de voltar a nos ver.
Quem sabe?
Em poucos dias, Zeff me fez ver, entre outras coisas, que existem mundos e fundos e nas palavras dele, bem ou mal, eu vivo no mundo, ele, por sua vez,… vive no fundo…
No fundo do mundo!
Escritor, viajero.