García Linera: “Precisamos de uma Internacional de movimentos sociais”

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Elena Apilánez e Vinicius Mansur*
Vice-presidente da Bolívia cobra mais iniciativa dos movimentos sociais latino-americanos, pede visão “continentalizada” da esquerda e afirma que o atual processo político ainda não põe a superação do capitalismo em jogo, mas dele emergem ações comunistas no interior da sociedade

Álvaro García Linera não é um vice qualquer. Além de acumular o posto de presidente do Congresso boliviano, ele é um dos principais responsáveis pelas articulações políticas do governo de Evo Morales e talvez o mais destacado teórico do processo pelo qual passa a Bolívia atualmente. Sua larga bagagem política e intelectual, além de o credenciar a receber títulos como o “vice-presidente mais atuante do continente” ou o “intelectual mais importante da América Latina na atualidade”, também o capacita para dar largas e aprofundadas respostas, fazendo com que nossa entrevista não chegasse nem à metade das perguntas preparadas.

Em meio à atribulada agenda de um vice-presidente e candidato à reeleição em campanha, Álvaro García concedeu ao Brasil de Fato duas rápidas horas de uma conversa pouco factual e mais analítica sobre o processo político que vive a América Latina, em geral, e a Bolívia, em particular.

– O senhor acha que essa ascensão recente de governos oriundos de organizações com trajetórias de esquerda configura uma nova onda?
 – Creio que este é um ciclo muito novo e inovador sem comparação nos últimos 100 anos da história política latino-americana. A única coisa comum no século 20 foram as ditaduras militares. Fora disso, a esquerda teve presença descompassada na região. Processo parecido foi a onda de luta armada, mas não era presença vitoriosa de esquerda; era combativa, resistente, por parte da ala mais radicalizada. A vitória em Cuba trouxe uma leva guerrilheira, que nos anos de 1960 estava em todo o continente. Quando a esquerda armada triunfa na Nicarágua, o continente já tinha outros ritmos, outras rotas. Então, pela primeira vez em 100 anos há uma sintonia territorial da esquerda, com governos progressistas e revolucionários. A direita já tinha essa habilidade de “continentalizar” suas ações.

-Quais elementos dão unidade a essa sintonia?
-O que permitiu a leva de governos progressistas foi o ciclo neoliberal. Ciclo que, mais ou menos, golpeou todos os países de maneira quase simultânea em seus efeitos e defeitos. O atual processo é muito inovador por seu caráter “continentalizado” de esquerda, pela busca de políticas pós-neoliberais – umas mais radicais, outras menos –, por ser um ascenso da esquerda através da via democrática-eleitoral, por ser a primeira vez que ela projeta estratégias de caráter estrutural coordenadas em nível continental. Antes, a esquerda tinha um olhar sobre o continente em termos da conspiração revolucionária. Nunca em termos de economia, de comércio, de criar um mercado comum, uma defesa comum. É uma série de desafios sobre os quais ela nunca tinha refletido, que tem a ver com o exercício de governo, com sua maturidade de reflexão.

E também é inovador porque isso se faz sem um pensamento único de esquerda. Não há um referente comum como a URSS, por sorte; não está a China, melhor ainda. O processo de esquerda são muitas coisas agora. Pode ser marxista ultrarradical, pode ser socialista, pode ser vinculado ao pós-modernismo intelectual, pode ser mais nacionalista… e todos são esquerda. Isso é muito rico, permite uma pluralidade de reflexões, de discursos, de ideias.  Não há o modelo a imitar ou uma “igreja” que dita o bom comportamento, como ditava antes. É um momento de reconstrução plural do pensamento de esquerda, ainda primitivo.

Mas temos que ver a história em processos que podem durar 50, 80 anos. Não nos desesperemos por não ter as coisas consolidadas agora, por não termos com claridade um grande programa de esquerda continental e mundial. Isso vai demorar 20 anos pelo menos, depois de várias derrotas, de várias vitórias e outras derrotas.

Este é um momento germinal e ainda há pedaços do continente  que estão em outro rumo. Isso é normal, inclusive, é possível prever a curto prazo uma volta parcial do pensamento e dos governos de direita em alguns países no continente e não vamos nos assustar. Lutemos contra isso, mas este é um processo longo e lento, vai requerer ainda várias levas de ascenso social e popular que permitam despertar toda a potência desse momento histórico, que ainda não se fez visibilizar totalmente. Ainda faltam novas ondas. Não esqueça que Marx usava o conceito de revolução por ondas. Elas vão e voltam, logo vêm de novo e regressam um pouco. A onda atual é das primeiras, logo haverá um pequeno refluxo à espera de uma nova onda que permitirá, a depender dos homens e mulheres de carne e osso, expandi-la a outros territórios e aprofundar
as mudanças que até agora são superficiais, parcialmente estruturais.

-Esse processo coloca a superação do capitalismo em jogo?

-Marx dizia que o comunismo é o movimento real, que se desenvolve diante de nossos olhos e que supera a ordem existente. Não é uma questão de teoria, de discurso, é questão de realidade. E está claro que a primeira meta pautada pelas forças populares diversas do continente foi, em primeiro lugar, frear o esvaziamento social, democrático e material que caracterizou o processo neoliberal. Esvaziamento material a partir da exteriorização dos excedentes, esvaziamento social com a retirada dos direitos conquistados nos últimos 100 anos e esvaziamento democrático mediante a aterrizagem da doutrina única, liberal e individualista.

O segundo momento é de reconstituir e ampliar direitos da sociedade, assumir controles do excedente econômico, expandir a geração da riqueza com sua distribuição. Essas demandas sociais surgem a partir de 1995 e são de caráter democrático-social, no sentido marxista do termo. Ainda não foram atendidas plenamente, como no tema da terra; entretanto, elas já abriram espaço para demandas mais radicais, mais comunistas, que ainda são incipientes, parciais e fragmentadas. Veja a experiência argentina com a tomada de fábricas, as experiências no Brasil, na Venezuela, as empresas sociais na Bolívia, criadas no nosso governo,
reivindicadas pelo povo, ou a potencialização dada às estruturas comunitárias, para buscar um desenvolvimento diferente à economia de escala, com tecnologias alternativas, articulações de produção.  Todas elas avançam, têm a experiência de gestão e regridem. Aqui na Bolívia, com a questão da água: existia uma experiência falida [privatização da água em Cochabamba], defende-se a socialização do controle da água, implanta-se outra gestão e, em seguida, ela retrocede.

Ou seja, essas potencialidades comunistas da sociedade – porque não há comunismo que não venha da sociedade, não há comunismo de decreto, não há socialismo de Estado, isso é sem sentido – têm ainda uma força muito dispersa, uma presença embrionária, não conseguem coagular, mas estão latentes. Seguindo essa leitura, hoje, em 2009, não estamos diante de uma perspectiva de superação do capitalismo. Dizer outra coisa seria nos enganarmos. Mas emergiram ações da sociedade que apontam para o socialismo, construído pelas próprias classes trabalhadoras. Existem sinais, sementes, aflorações, mas ainda não constituem a razão dominante da sociedade.

-E quanto isso amadurecerá?

-Em dez, 20 anos? Não se pode definir. O que pode fazer o revolucionário é, a cada sinal de socialismo – como a reapropriação, por parte dos produtores,  de sua própria produção com democratização e socialização da tomada de decisões –, reforçá-lo para que se expanda. O dever do comunista é meter-se de cabeça a cada abertura, não inventar o comunismo. O comunismo é a capacidade real do povo de produzir e se associar. Eu tenho a leitura de Marx, ao avaliar a Segunda Revolução Industrial, em 1850, que dizia que serão necessárias dezenas, milhares de lutas, de fracassos, de pequenas vitórias, depois novamente fracassos, para que, da própria experiência da classe trabalhadora, surja a necessidade de associar-se para tomar o controle da produção. E isso é uma visão muito, mas muito otimista do ciclo que está emergindo.

-Que importância tem a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e a Unasul (União das Nações Sulamericanas) neste cenário latino-americano, e como o senhor vê os movimentos sociais nesse processo de integração?
-A Unasul é um projeto continental, fruto da surpreendente simultaneidade de governos progressistas em boa parte do continente. Além da luta, estamos discutindo em termos de estrutura, de matéria, de economia, de sociedade, de cultura, de legislação… um grande salto. A esquerda não refletia sobre isso antes e isso é mudar nosso “chip”. Ainda não se escreveu sobre esse tema que, inevitavelmente, tem que entrar no discurso de esquerda. Ele segue sendo assunto dos funcionários das chancelarias tradicionais, mas não é uma construção desses dinossauros. É uma construção de governantes progressistas que não tem o acompanhamento do intelecto social progressista, que está aí atônito, vendo, pasmo, esse novo ciclo.

Tal projeto de integração tem que tomar em conta a unanimidade dos critérios de cada país, sendo um processo lento, estrutural. A perspectiva é boa, mas a velocidade é lenta, como tem que ser um bom processo de integração, não há que se desesperar. A União Europeia está aí há pelo menos 30 anos e ainda está se construindo. Construir Estados-continente é complexíssimo, mas este é o rumo do mundo no século 21, isso é o que vai contar no movimento de tomada de decisões econômicas.

. Um jovem do campo se aproximou e perguntamos: “Como está? Em que série está?”. “Estou no terceiro básico, tenho oito anos”, disse. “E o que você fez com o seu bônus?”, perguntamos. “Estou guardando para me preparar para ser presidente como você”. Ah, por favor… É a melhor resposta que poderia dar. Quando um indígena coloca como possibilidade de vida ser governante, o tema do poder se converte em um feito próprio, porque era uma questão de submissão! O poder era de poucos brancos e formados, e agora um camponês do norte de Potosí, a zona mais pobre do país, dizia “eu também posso ser presidente”. Temos aí uma revolução cultural.

-Há um simbolismo forte aí, mas até que ponto as bases realmente estão discutindo as transformações políticas? Qual é a proximidade das bases e da intelectualidade?
-São espaços diferentes. Há o mundo da academia, que recebe para pensar 24 horas, e o mundo da vida laboral, associativa, sindical, do movimento camponês. Espaços diferentes que possuem canais de comunicação e distintas linguagens. No tema das alianças: a academia pode falar de bloco de poder, pode usar Gramsci, enquanto do outro lado a discussão é apoiar ou não os moradores desse bairro, se apoiamos ou não alguma candidatura. É o mesmo tema verbalizado de distintas maneiras. As mesmas preocupações da base são levadas para a academia e, na academia, de tudo que se reflete, poucas coisas são debate nas bases. Mas existem momentos em que eles se aproximam mais, criando um espaço de intervenção maior; e aí são os
grandes ascensos. Quando a reflexão dessa intelectualidade progressista é o debate das assembleias. Quando o que surge em um jornal, em algum panfleto, em algum discurso rapidamente é retomado pelos níveis dirigentes e levado à base. Esta é a dinâmica. É impossível isso ser permanente, porque são espaços diferentes no tempo e na forma de vida. Creio que em nenhuma parte isso se deu. A imagem que temos dos sovietes e do Partido Bolchevique está um pouco idealizada. O fato de que nas fábricas os operários liam Lênin não é verdade.

Pensar essa fusão do espaço intelectual com o movimento social é impossível. Existem aí vasos comunicantes fluidos que levaram, inclusive, o âmbito intelectual a mudar em dez anos. O que debatiam os intelectuais antes? Governabilidade e coisas assim. Hoje debatem na universidade pública, e até nas privadas, a nova Constituição. Mesmo os setores conservadores têm que refletir sobre os fatos, têm que saber como o Direito Penal vai estar vinculado com a Nova Constituição.

Hoje existem vasos comunicantes. Em certos momentos são rios comunicantes, ou fusões parciais, e logo separações, como em qualquer processo de transformação;
outra vez por ondas. Nada é definitivo, perpétuo ou já dado. A ideia de revolução permanente não é tão certa. Estes oito anos intensos na Bolívia demonstram essa dinâmica de ondas que falava Marx, mais do que o linear que nos dizia Trotski.

*Jornalistas de Brasil de Fato, desde Bolivia.
 

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