Um moço esquisito

1.779

Um pequeno povoado.
Um desalento só!

Uma única rua, esburacada, como uma fenda ou ferida aberta entre as pequenas e poucas casas de alvenaria ou de pau a pique, sem pintura, quase coladas umas às outras.| CARLOS GRASSIOLI.*

 

Raríssimas árvores raquíticas e mal cuidadas e uma pequena igreja velha, meio destelhada, onde raramente aparecia um padre pra celebrar alguma missa, batizado ou casamento, e que servia também de escola.

 

Ao sol, ao deus dará, como muitas outras cidadezinhas do agreste nordestino, de tamanha aridez que tocava os ossos e até a alma daquela gente simples e deserdada que ali vivia.

 

“Não pesa na balança”. Assim costumavam se referir a ele, desde que chegou à pequena cidade.

 

E não pesava mesmo, de tão magro e desengonçado. Diziam, também, que ele não tirava o traje preto, seu uniforme de trabalho, nem pra dormir; e que não precisava de cama… porque dormia pendurado num cabide.

 

Um homem alto, bem alto! Mas não altivo, ao contrário: meio curvado; e a maneira de se movimentar, seu caminhar balançado, seu gestual, os braços soltos como se estivessem pendurados nos ombros, tudo evocava um boneco de manipulação ou aqueles grandes bonecos do carnaval de rua de Olinda.

 

Nariz aquilino, olheiras profundas; e sobre a cabeça, contrastando com a pele clara, como se fosse peruca, uma cabeleira negra, espessa, farta e ondulada.
Um ser destituído de qualquer beleza física… exceto pelas mãos.

 

Chegou à pequena cidade sozinho, vindo da capital para inaugurar e ocupar o posto de correio, tendo se instalado e morado por algum tempo na única pensão do lugar.

 

Até um dia em que seu salário permitiu; então alugou uma das pequenas casas, que de imediato pintou, improvisando, além de uma cisterna, de um lado um pequeno jardim, e, do outro, uma pequena horta, destacando-se logo das demais casas do vilarejo.

 

Era visto como um bom partido pelas famílias, mas as moças simples e casadoiras do lugar não se interessavam, por ele ser, além de esquelético —coro e osso—, pálido, comprido e desengonçado… Muito esquisito!

 

Mas as mãos… Ah, que mãos! diziam as pessoas, em tom de exclamação. Dedos longos em mão delicadas, macias, mas masculinas; grandes, que em movimento pareciam executar passos de alguma dança.

 

A senhora que lavava sua roupa e fazia limpeza semanalmente em sua casa, na tentativa de convencer a filha a se interessar por ele, costumava dizer:
“Pois veja, Pepita, minha filha: é um moço tão fino, mas tão fino… que até de “pijame” ele dorme”.
(E que mãos, Pepita… que mãos!)

 

Apesar de ser uma pessoa reservada e solitária, mantinha uma boa relação com as pessoas do lugar, principalmente com as que usavam o serviço de correio.

 

Num dia qualquer, parou em frente à sua casa um grande caminhão de mudança, descarregando, com todo o cuidado que exigia, um piano de cauda preto, provocando o espanto e curiosidade dos moradores —alguns solicitados a ajudar, tamanha a dificuldade de fazê-lo entrar na pequena sala.

 

Naquela noite, enquanto uma lua esplendorosa que parecia grávida de tão cheia dançava solta no céu, e quando tudo e todos na terra dormiam em silêncio, eis que os moradores aos poucos foram sendo acordados por um som, por uma música desconhecida. Alguns, inclusive, se beliscavam para ver se não estavam sonhando.

 

As portas, uma, depois outra… todas, foram se abrindo lentamente, e as pessoas, adultos e crianças, atraídas pela música desconhecida, ainda em roupas de dormir, de pés descalços, algumas carregando crianças nos braços, foram deixando suas casas, caminhando no mais absoluto silêncio em direção à casa do funcionário do correio, de onde vinha o som.

 

Até os cães acompanhavam ao largo e em silencio aquela estranha procissão de sonâmbulos. Porque era o que parecia.A casa estava toda aberta e iluminada unicamente pela luz da lua que entrava pelas janelas, pela porta da sala, esparramando-se pelo chão, subindo e derramando-se sobre o piano, alcançando as mãos e o rosto, daquele ser solitário, que, numa espécie de transe, de tão inspirado vibrava com o corpo todo.

 

Tão envolvido estava pela música sublime que tirava do piano, como se estivesse sozinho no mundo, que demorou a perceber a aproximação silenciosa de pessoas que foram se sentando na soleira da porta, e de outras que ocuparam os parapeitos das janelas.

 

A mesma luz fria e azulada que iluminava a pequena sala emprestava um brilho novo, diferente, aos olhos daqueles simples porém ilustres espectadores, do lado de fora, iluminando cada rosto e deixando transparecer, nas expressões, uma mescla de sonolência e encantamento.

 

Entenderam, finalmente, que as duas mãos, que aquelas magníficas mãos, que dançavam com absoluta familiaridade sobre o teclado, não eram obra do acaso porque haviam sido preparadas —e muito bem preparadas—, como que exclusivamente, para aquele instrumento. Alguns tinham certeza de que os dedos não se encostavam às teclas.

 

Já era madrugada quando os últimos acordes de uma música que parecia vir do céu foram escutados pelas pessoas do lugar, que voltaram às suas humildes casas e naquela noite foram dormir em estado de graça. Como nunca dantes!

 

A cidadezinha nunca mais foi a mesma. Como se naquela inesquecível noite o povoado tivesse acordado, não só para a música, para a arte… Mas para a vida!

 

Porque alguns anos depois podiam se ver ali uma escola nova, pequenos jardins privados, as casas todas com cisternas —umas pintadas de alguma cor, outras caiadas—, generosas sombras de arvores viçosas ao largo da rua, agora toda calçada e com passeio para pedestres.

 

A pequena igreja, restaurada e contemplada com um pequeno órgão (um harmônio de pedal) servia também de escola de música, dentro da qual e junto ao púlpito foi improvisado um pequeno palco para recitais de poesia, e audições musicais, que incluíam até apresentações eventuais do coral da cidade e pequenas peças teatrais, encenadas pelos próprios moradores.

 

Ao lado da igreja, podia se ver, também, entremeado a um jardim generoso e colorido, uma verdejante horta coletiva.

 

Tudo isso, sob a égide, sob a batuta do esquisito ex-funcionário do correio, agora aposentado, e que, ao contrário do que diziam, pesava na balança, sim, e o boato agora –porque a cidadezinha não dispensava uma boa lenda e as crianças acreditavam— era que ele nunca tirava o paletó preto (que deixava bem pronunciadas, nas costas magras, as duas pontas das omoplatas) porque escondia, embaixo… duas pequenas asas.

 

Ah, o nome dele —do moço esquisito—: Olegário!
——
* Escritor.

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