Carlos Grassioli* / Arte pequena, mas não menor.

1.983

De saúde frágil, morreu sozinho naquela casa em meio a um antigo clube campestre semi-abandonado, cujas árvores nativas, plantadas nos primeiros anos da fundação, cresceram, frutificaram e se espalharam generosamente, formando uma pequena, porém preciosa, reserva de mata atlântica, onde as mais variadas espécies de pássaros se aquerenciaram, usando, até, alguns dos velhos e pequenos chalés de madeira, abandonados e já apodrecidos, como “moradia”.

 

E eram eles, os pássaros, através de suas fantásticas sinfonias, os anunciadores de sua maior e talvez única alegria diária.
Não era esquizofrênico, nem misantropo, como muitas pessoas pensavam; um homem muito sensível, isso sim: arredio, silencioso e tímido que se aposentou cedo, acometido de um mal incurável: o desencanto com o mundo e com sua própria espécie.

 

Escondeu-se, refugiou-se, dentro daquela velha casa coberta de parasitas, de hera e que se confundia com a imensa e velha árvore literalmente encostada, cujos galhos abraçavam-na e quase entravam pelas janelas, passando rente ao telhado verde, coberto por uma grossa camada de musgo.

 

Nem mesmo o único vizinho, mais próximo, tinha alguma idéia do que ele fazia ou de como ocupava seu tempo. E muito menos as poucas pessoas que por ali passavam e que tinham certeza de tratar-se de uma casa abandonada que, logo, logo, sucumbiria à grande árvore que já caía sobre ela.

 

Sucumbiu antes do que a casa e a árvore.

 

«Uma morte tão silenciosa quanto foi sua vida» comentaram os seus poucos familiares, com os quais contatava esporadicamente, e que sabendo da sua situação de saúde precária encarregaram a uma espécie de zelador ou guarda florestal, seu único vizinho próximo, que o observasse, mesmo que de longe, e os avisasse caso surgisse algum imprevisto.

 

Ao entrarem na velha casa para a retirada do corpo, concluíram que nada do que tinha dentro poderia ser aproveitado.

 

Nem aquela velha e estranha arca cheia de fundos de latinhas de refrigerante ou de cerveja, tão bem recortados que pareciam espelhinhos côncavos, responsáveis pelo passatempo favorito daquele ser sensível que ali viveu. “Aquelas bobagenzinhas que ele gostava de pintar, com palito dental ” – comentaram. E completaram: Morreu sem deixar vestígios.

 

Mas estavam enganados, porque no galpão de reciclagem do município, um dos trabalhadores encarregados pela separação de lixo, provando que sensibilidade não é privilégio de classe social alguma, ficou espantado… e encantado ao abrir aquela velha arca e encontrar dentro dela centenas de fundos de latinhas, cada uma trazendo dentro do lado côncavo, em perfeita perspectiva, uma obra prima em miniatura de pintura realista, a óleo.

 

Nenhuma era igual à outra. Aquela, então, onde o mar enfurecido, com ondas gigantescas, ameaçava afundar o imenso barco à vela, foi uma das que mais o surpreendeu.

 

Sua pequena casa simples, de periferia, até então de paredes nuas, foi literalmente forrada pelas minúsculas e curiosas pinturas.

 

Decidiu olhar, demoradamente, somente uma a cada dia, garantindo para si, com isso, alguns anos de belas e incomparáveis surpresas. Abriu para “visitação pública”… Mas somente para crianças, porque só elas, segundo ele, sabem ver e apreciar determinadas coisas.

 

Parte dessa história —como a casa, o personagem recluso, que pintava com palitos, sua morte— e sua obra no mínimo curiosa, são reais. Ver uma das miniaturas (a do barco no meio do mar) foi suficiente pra que eu, numa espécie de homenagem a esse ilustre e sensível desconhecido, imaginasse ou inventasse uma continuação para a sua história, aproveitando, também, pra me salvar de um tipo sensação incomoda que às vezes toma conta da gente, de mesmice morna, que atrofia, degringola… e dá gangrena… “que desacata a gente, que é revelia, que é feito uma aguardente que não sacia… que nem dez mandamentos”… que nem mesmo as vibrantes e criativas redes sociais vão conciliar. Ao contrário!

 

A lembrança daquela minúscula pintura no fundo de latinha de refrigerante, e do mar de poesia que ela continha, não só me salvou de mim mesmo, do meu próprio naufrágio, como me permitiu ir mais longe: entrar no barco, segurar o leme e salvar aquela imensa nave do seu iminente naufrágio.

 

Feliz e orgulhoso, nem me importei quando constatei que se tratava de um barco fantasma, vazio, à deriva.

 

Ao contrário, icei todas as velas, instalei-me confortavelmente nele e deixe-me ficar ali, aguardando bons ventos, que me levassem até aquela ilha, mediterrânea, que parece flutuar num azul espesso, da qual eu sinto tanta saudade, embora lá nunca tenha estado.

 

E que provavelmente nem exista… Mas à qual eu posso chegar, como já cheguei diversas vezes, nu e cru como minha (in)verdade poética, sem nem mesmo ter saído de dentro do meu quarto.
——
* Escritor.

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