Carlos Grassioli* / Wislawa Szymborska, com mapa e rosa na mão…

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O dia começava envolto por uma espessa neblina, e numa pequena passagem para pedestre, sob um elevado —quem diria, tão cedo!— uma florista de origem cigana, que sugeriu como cor um “vermelho paixão”.
Com mapa e rosa na mão, e seguindo a orientação do recepcionista do hotel, lá fui eu honrar o encontro marcado.

 

Eu não conhecia a cidade nem ninguém a não ser você, e acabei me perdendo.
Aliás, eu costumo me perder e com frequência (às vezes, sem mesmo ter saído de dentro do meu quarto), e em situações como essa sinto sempre uma espécie de desamparo natural, mas acabo sempre sendo salvo por alguma estrela guia.

 

Que se anunciou, na personificação de um poema animado em marrom, em meio à neblina, e que, sorrindo luminoso, me perguntou, em inglês, se eu estava perdido.
Um susto, um sublime e maravilhoso susto, diante de tanta beleza, que poderia ser divina, se não fosse tão humana!

 

Era um monge Franciscano, com não mais de 22 anos, belo como a lua e vestido como São Francisco.
Espantado, falei que estava indo ao teu encontro e aí foi a vez de ele se espantar, mas sem perder o sorriso; e a o me dar um norte revelou, também, um tipo de rara beleza interior, ao acrescentar ao gesto, uma dose generosa de ternura.
Perder-se, às vezes, pode ser tão bom!

 

Alcancei finalmente o portão, que já estava aberto, e a neblina, como a cortina de um palco, aos pouco foi se abrindo, permitindo que os primeiros raios de sol da manhã, entremeando-se aos velhos plátanos, iluminassem o espaço onde nosso singular encontro deveria acontecer.
O silêncio era de morte e não havia viva alma.

 

Não poderia ser diferente, em se tratando de um cemitério, um dos mais antigos da Polônia, cuja placa, na entrada, informava os nomes das pessoas ilustres ali enterradas.
Menos o teu! Deve ter sido um dos teus últimos pedidos, não?

 

Afinal, passaste uma vida meio incógnita, quieta, dentro de casa, escrevendo para uma revista, cuja coluna se chamava Leitura não obrigatória. Mas tua poesia alcançou as ruas e o mundo, e te surpreendeu, aos 73 anos, com o premio do Nobel de literatura.

 

Surpresos, também, ficaram os responsáveis pela entrega do prêmio ao te perguntarem por que até ali havias publicado somente 350 poemas? Tua impagável e implacável resposta:
“Porque eu tenho uma lixeira em casa!”

 

Ao entrar em contato com tua poesia, arrebatado e salvo de mais um naufrágio existencial, tive já nas primeiras páginas a certeza, não só de uma direção, mas de um sentido pra minha próxima aventura no além mar: conhecer a Polônia —mais especificamente a Cracóvia— em busca do teu autografo, custasse o que custasse!!!

vO que eu não sabia era que já tinhas partido desta pra nenhuma; mas ao saber mudei de planos.
A questão agora era como te encontrar, em meio a tantas lápides de nomes esquisitos?

 

(Teu nome, aliás, Wislawa Szymborska —segundo um amigo meu, dono de um senso de humor incomum, como o teu—, remete a uma espécie de sopa eslava, de caldo espesso, meio gorduroso, de repolho com batata e carne, pode?).

 

Segui procurando teu nome em meio a outros tantos, quando, de repente, escutei um ruído. Ruído de vida. Era a florista do cemitério, que do lado de fora, armava sua banca de flores.

 

Estava de costas e levou um enorme susto ao escutar minha voz e ao me ver saindo de dentro do cemitério, àquela hora da manhã.
Um fantasma falando outra língua… com uma rosa vermelha na mão?

 

Teu nome foi a palavra mágica, que fez com que ela, caminhando rápido na minha frente e com gestos vigorosos e nervosos, me desse uma direção.
Que não adiantou muito, pois logo, logo, estava eu perdido, de novo, em meio a velhos túmulos… e sem São Francisco pra me acudir.
Então decidi falar baixinho contigo, pra não perturbar tua vizinhança no seu sono eterno.

 

— Tão bonita, esta manhã de quase outono, tudo conjuminando para o sucesso de nosso encontro… e você não comparece? Essa não! Vim de tão longe!…

 

Brincadeira de esconde-esconde tem hora! Pelo amor à poesia —esse mesmo amor que me trouxe até aqui— me dê algum sinal, alguma pista.
—Por favor, Wislawa, não te faças de morta!

 

Eu te sabia, porque te sentia próxima… Então o acaso, meu fiel aliado — tanto nas viagens como na vida— “sugeriu” ao velho Plátano mais próximo que deixasse cair uma grande folha amarela, pendurada num pequeno galho, pra que descesse em movimento circular, como um para-queda, em direção à minha cabeça e que fizesse com que eu desse um passo atrás e caísse sentado… em cima do teu túmulo.

 

Eu, que já estava falando sozinho, em pleno cemitério, não consegui controlar a gargalhada, que veio solta e carregada da mais pura felicidade.
Ri solto até encher os olhos de lágrimas, que me serviram pra chorar, não de tristeza, mas de grande alegria, ao encontrar tua pedra lapidar, absolutamente simples, no chão, unicamente com teu nome e datas do teu nascimento e morte, sobrescritos. Mais nada!

 

—Foste coerente até o túmulo.
Mas não sensata.
Eu também não sou uma pessoa sensata.
Pessoas sensatas, algumas até gostam, mas não fazem poesia.
E não se perdem. Nunca! Por isso, também, nunca correm risco. Nem de serem amparadas nos braços de São Francisco.

 

Foi essa espécie de loucura mansa, essa insanidade comedida —comum aos não razoáveis, aos que sonham acordados— da qual fui acometido ainda criança, que me permitiu deitar e rolar no tapete mágico da tua poesia e vir até aqui.

 

E é com toda minha mais pura, verdadeira e eterna gratidão, que te ofereço esta rosa.
Cracóvia, Polônia, setembro de 2012

——
Escritor.
(Wislawa Szymborska (1923-2012), poeta, traductora, ensayista, obtuvo el Premio Nobel de Literatura en 1996)

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